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Clara Raposo: “É difícil prever o que quer que seja com esta nova Presidência nos Estados Unidos”

Quando Donald Trump diz que pode tomar a Gronelândia, estamos a falar de um mundo quase catastrófico, afirma a vice-governadora do Banco de Portugal. E, neste quadro, diz, é de sobrevivência que falamos.

29 de Janeiro de 2025 às 12:30
Bruno Colaço
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    Bilhete de identidade Idade: 54Cargo: Banco de Portugal, vice-governadora (desde dezembro de 2022), representante do Banco de Portugal no plenário da Rede de Bancos Centrais e Supervisores para um Sistema Financeiro Verde, presidente do ISEG (julho de 2018 a novembro de 2022), professora catedrática do ISEG (desde 2010)Formação: Doutorada em Finanças, London Business School, Universidade de Londres 
    A parte importante do ano vai ser este primeiro trimestre, em que "vamos ter o nosso caminho definido para os próximos tempos", considera Clara Raposo, convidada desta semana das Conversas com CEO, integrada na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30. Sendo difícil fazer previsões neste momento, afirma que vamos ter dois anos turbulentos. Numa entrevista realizada antes da tomada de posse de Donald Trump, a vice-governadora do Banco de Portugal admite que as políticas do outro lado do Atlântico podem gerar danos para a Europa. Durante mais de meia hora falamos do impacto que a gestão dos riscos climáticos pode ter nas taxas de juro já que, diz, "quem expõe mais os bancos ao risco climático vai ter de sofrer uma diferenciação em relação a quem menos os expõe". Uma conversa que pode ser ouvida na íntegra em podcast.

    O que a surpreendeu mais nestas suas novas funções no Banco de Portugal?
    Foi uma mudança grande, passar da Universidade e também de algum contacto com o mundo empresarial privado, mais descontraído, onde há menos formalismo, para uma instituição única no país, inserida numa arquitetura europeia muito complexa e que tem um grau de formalismo muito diferente. É um bocadinho um choque entrar num ambiente muito silencioso, muito sério. Levei algum tempo até me habituar a esse registo e também a alterá-lo em alguma coisa e a tornar, espero eu, a nossa forma de trabalhar um bocadinho mais animada e participada. E hoje já me sinto completamente à vontade em qualquer reunião do Banco de Portugal [risos]. E também no contexto internacional.

    Mas há alguma coisa que a tenha surpreendido? "Nunca pensei que o Banco de Portugal"...
    … tivesse tanta gente nova. Tinha aquela imagem da organização, pesadona, antiquada, lenta, só com gente muito antiga, mas na verdade não é assim. Há muitos antigos alunos meus. Mas também de Direito e de tecnologias. Os bancos centrais também precisam alterar alguns procedimentos e ver a forma certa de a tecnologia ajudar a desempenhar, de forma mais célere e eficiente, as nossas funções de supervisão e de termos um bom sistema de pagamentos.

    Quem expõe mais os bancos ao risco climático vai ter de sofrer uma diferenciação em relação a quem menos os expõe.
    Já usam inteligência artificial?
    Claro que já utilizamos inteligência artificial. Por exemplo, para a leitura e análise de documentação, de regulamentos... Há também ferramentas para uma supervisão mais tecnológica, para além da análise humana. Este ano, o prémio nesta área [de inteligência artificial] da Central Banking foi para o Banco de Portugal, para os nossos desenvolvimentos.

    Identifica, neste momento, uma tendência para se reforçar a componente de adaptação e deixar cair mais a de mitigação dos riscos climáticos?
    A mitigação é essencial e não está posta de parte. Fala-se agora um bocadinho mais em adaptação porque a materialização do risco climático já não é uma fantasia. Todos os dias os vemos. Vemos o que está a acontecer na Califórnia, o que se passou em Valência, os nossos incêndios. Não vamos desistir [da mitigação], mas temos de fazer com que as nossas populações e bens resistam àquilo que já está em curso.

    Qual é o ponto de situação do sistema financeiro português?
    São ainda passinhos de bebé os que os bancos centrais pelo mundo inteiro estão a dar, no sentido de medir estes riscos. Não comparamos mal com a média europeia no que diz respeito à exposição dos nossos bancos a diferentes riscos físicos.

    Há muitos gestores a falarem na necessidade de fazerem alterações para terem acesso ao crédito.
    Exato. Porque os bancos têm de reportar, pela primeira vez e em relação a 2024, todo o detalhe sobre a pegada das suas carteiras. Não sabemos ainda o que os bancos vão fazer com isso. Mas, a partir do momento em que nos apresentarem dados com alguma qualidade, têm de nos demonstrar que são capazes de gerir esta exposição ao risco climático. Quem expõe mais os bancos ao risco climático vai ter de sofrer uma diferenciação em relação a quem menos os expõe.

    Ou seja, vai haver uma diferenciação de taxas de juro.
    Isso já é o negócio bancário, não é o meu negócio [risos], enquanto supervisor.

    O impacto será mais nas empresas do que nos cidadãos, nos créditos à habitação?
    Se calhar também terá de ser nos cidadãos. Um dos grandes fatores de ineficiência no consumo de energia – e, portanto, genericamente, na pegada de carbono – tem a ver com a eficiência energética das nossas habitações. É importante que se venha a fazer essa transformação, não só das nossas casas, como também dos edifícios de escritórios, do parque fabril. Será um contributo muito importante e vou acreditar que não é impossível.

    A Carta de Princípios de Investimento Responsável do Banco de Portugal foca-se só no pilar ambiental. O pilar social e de governação não é importante?
    Não significa, de todo, isso. Temos preocupações sociais e de governação. [A carta] tem mais a ver com as nossas carteiras de investimento.

    E a vossa carteira é muito verde?
    Já vai tendo uma componente verde mais significativa. Nestes últimos dois anos já medimos e publicámos a pegada de carbono da nossa carteira. Nos reinvestimentos temos uma preocupação nessa matéria e fizemos um reforço de investimentos ESG.

    E em matéria da pegada do próprio Banco?
    Também fazemos muito ou pelo menos algum trabalho. Por exemplo, utilizamos algodão orgânico na produção de notas na fábrica do Carregado. E temos vindo a descarbonizar o processo de produção das notas. Lançámos em dezembro um concurso para as universidades e politécnicos para dar uma segunda vida às notas. Já temos um processo de incineração dos resíduos das notas com reaproveitamento dessa energia. Este desafio serve para ver se alguém tem ideias melhores de reutilização. Faz parte do nosso programa de descarbonização, divulgado o ano passado.

    Os salários do Banco de Portugal são, periodicamente, tema de debate público. Qual é o racional para salários que são, em regra, bastante superiores, sobretudo das lideranças, aos da média do país?
    Uma coisa é falar-se do Banco de Portugal como um todo e outra é das remunerações da administração, definidas por outro tipo de regras. Se há salários transparentes são os do conselho de administração do Banco de Portugal.

    Mas há um problema – não apenas de Portugal, é geral, mais grave nos EUA – de desigualdade salarial e de aumento do fosso entre quem ganha mais e menos. Qual é o racional que podemos encontrar?
    Não sinto que haja em geral essa desigualdade. Temos olhado com muito cuidado para as remunerações de todas as pessoas no Banco de Portugal. Até porque o mercado de trabalho tem estado bastante aquecido por toda a Europa. Para mantermos as pessoas e para nos mantermos como um empregador atrativo temos de remunerar as pessoas de forma competitiva.

    As nossas remunerações [na administração do Banco de Portugal] não se comparam com a dos supervisionados.
    Escassez é uma das explicações?
    O mesmo acontece com as administrações de instituições. Somos grandes especialistas no sistema bancário, supervisionamos os bancos e as nossas remunerações não se comparam, por cima, com as praticadas pelos nossos supervisionados. É um outro aspeto que tem de ser tido em conta neste debate. Por outro lado, temos um Banco Central com muita renovação, o que também pode justificar um pouco daquilo a que chamou desigualdade. Cerca de 30% dos nossos trabalhadores estão no banco há menos de 5 anos.

    O Conselho Consultivo do Banco de Portugal tem estado incompleto [entretanto completado pelo Governo] e a Comissão de Vencimentos não se reunia há mais de uma década. O Banco Central que obriga os outros bancos a cumprirem regras de governance, não as cumpre? É um bocadinho, como diz o povo, em casa de ferreiro, espeto de pau?
    Neste caso não. Em relação ao Conselho Consultivo, o Banco de Portugal segue à risca aquilo que é suposto fazer, reúne-se duas vezes, semestralmente. E não é o Banco de Portugal que tem a responsabilidade de escolher essas pessoas. São os anteriores ministros das Finanças e o atual. Temos tentado compensar de outras formas, com reuniões junto da sociedade civil. Sempre que temos, por exemplo, o Relatório de Estabilidade Financeira, uma vez por ano, faço uma reunião com representantes de diferentes empresas para falarmos sobre o que está a acontecer. E vamos fazendo parcerias com universidades sobre temas específicos.

    E no caso da Comissão de Vencimentos, como é que não se reúne há mais de uma década?
    No caso da Comissão de Vencimentos, mais uma vez, não é o Banco de Portugal que decide a reunião. E atualmente os vencimentos seguem a regra da evolução da remuneração da Administração Pública. Como a regra tem vindo a ser aplicada, se calhar só se reúne quando tiver algum motivo especial. Somos escrutinadíssimos nessa matéria.

    A nova Presidência de Donald Trump promete eliminar a regulação. Que impacto é que pode ter num sistema financeiro europeu tão regulado?
    É difícil prever o que quer que seja com esta nova Presidência nos Estados Unidos. Temos de seguir o rumo que acharmos certo. Porque vai ser sempre descontrolado.

    Mas vai ter impacto na competitividade.
    Com certeza que vai ter impacto na competitividade. Não sabemos o que vai fazer. Desregular completamente e não seguir as regras de Basileia pode desequilibrar um pouco a competitividade do setor bancário europeu versus americano. Vamos observar e fazer o nosso caminho. A economia dos EUA também tem as suas limitações. Apesar de ter alguma exuberância, não podemos ignorar o seu nível de dívida. Vamos ter dois anos muito turbulentos, em que Donald Trump vai tentar fazer tudo o que pode e, depois, a meio do mandato já se está a pensar na eleição seguinte e é capaz de começar a perder um bocadinho de gás. Porque as pessoas começam a pensar em quem será o seguinte e a reorganizar-se de outra forma. Mas vamos estar sob fogo.

    Mas são dois anos que podem fazer muitos danos à Europa. Estamos preparados para isso?
    É verdade [que podem existir danos]. Sim [estamos preparados]. Quando Donald Trump diz que pode tomar a Gronelândia estamos a falar de um mundo quase catastrófico, em que teremos de alterar radicalmente tudo. E nesse momento, para o setor bancário, ou qualquer outro, não será a nossa preocupação número um, porque é de sobrevivência que falamos.

    Como é que olha para este ano de 2025?
    O primeiro trimestre vai ser a parte importante do ano, para percebermos o que se vai passar a seguir. É a entrada do Trump, é o início de funções da nova Comissão Europeia e do novo Parlamento. A partir do primeiro trimestre, vamos ter o nosso caminho definido para os próximos tempos. Ainda tenho um bocadinho de esperança de que haja, algures, um pouco mais de juízo do outro lado do Atlântico e que não se ponha a vida normal em risco. Não é com confronto, ameaças e medo que se vive melhor.
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