Opinião
Dívida e procura
O ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Larry Summers, causou recentemente um alvoroço ao advertir para os riscos de uma persistente situação de estagnação económica a que se encontram sujeitas as economias desenvolvidas. Embora muitos tenham desvalorizado a chamada de atenção, a verdade é que os indicadores disponíveis acabam por lhe dar razão.
É verdade que o crescimento económico voltou aos Estados Unidos e ao Reino Unido, ao mesmo tempo que a economia da Zona Euro parece ter deixado de contrair e, após duas décadas de deflação, do Japão surgem sinais de uma resposta positiva às medidas de política económica preconizadas por Shinzo Abe – "Abenomics". Contudo, a recuperação global permanece débil, com a maioria das economias avançadas a atingir performances ainda abaixo dos valores de crescimento pré-crise.
Não é aliás difícil constatar que a recuperação tem sido anémica. O excesso de dívida acumulada no sector privado antes da crise e as posteriores tentativas de desalavancagem enfraqueceram consideravelmente a procura. Em alguns países, os défices orçamentais poderão ter compensado parcialmente uma procura pouco expressiva, mas acabaram por dar origem a um aumento da dívida pública. Ou seja, o excesso de endividamento não desapareceu, foi simplesmente transferido para o sector público, levando à criação de um excesso de dívida que pode perdurar por muitos anos ou mesmo décadas.
Hoje, o mesmo padrão está a desenrolar-se em muitas economias emergentes – nomeadamente na China. Com o crescimento do crédito a superar o aumento nominal do PIB, o endividamento privado está a aumentar. Tal implica lidar com um sério dilema: o aumento da dívida é essencial, mas conduz inevitavelmente à crise e à recessão. Neste contexto, os decisores devem ter em atenção se o rápido crescimento do crédito é mesmo necessário e se para o mesmo existem alternativas – uma questão que a ciência económica moderna tem até agora negligenciado.
Com efeito, muito do novo crédito disponível não é fundamental para o crescimento económico, porque não desempenha um papel directo no consumo, financiamento ou investimento. Os manuais de economia falam comummente num círculo virtuoso em que as famílias depositam as suas poupanças nos bancos, estes concedem empréstimos às empresas, para que estas invistam e criem riqueza e postos de trabalho... A verdade é que nas economias avançadas – e cada vez mais nas economias emergentes – esta realidade é em grande parte fictícia, porque os empréstimos em causa representam apenas uma pequena parcela do total investido.
Em vez disso, uma grande parte dos empréstimos bancários financiam a compra de activos, como imóveis comerciais ou residenciais, cujos preços reflectem principalmente o valor do terreno subjacente. Este financiamento não estimula directamente o investimento ou o consumo. No entanto, faz subir o preço dos activos, levando a que credores e devedores acreditem na sustentabilidade do crescimento do crédito.
Empréstimos para financiar activos, principalmente nos mercados imobiliários, podem desempenhar um papel assimétrico na economia real. Têm pouco impacto sobre a procura, a produção e os preços durante um período de boom económico, mas geram dívida, com a consequente necessidade de desalavancagem e o natural enfraquecimento da procura no período pós-crise.
Neste contexto, os decisores políticos devem distinguir entre categorias de dívida. Por exemplo, podem impor exigências de capital próprio mais elevados em empréstimos imobiliários. Estas políticas reduziriam a intensidade do crescimento do crédito, baixando assim a ameaça à estabilidade económica no longo prazo.
No entanto, o problema da procura reduzida pode persistir. Mesmo que tais empréstimos não estimulem directamente a procura de novos bens e serviços, podem fazê-lo indirectamente, ao criarem um efeito de riqueza artificial (levando as pessoas a gastar mais, porque se sentem mais ricas). Reduzir o crédito que faz subir os preços dos imóveis pode levar a uma redução da procura.
Uma restrição da procura nesta categoria de crédito reduziria as taxas de juros reais. Não podemos contudo supor que compensaria plenamente o impacto deflacionário de efeitos de riqueza reduzidos. Mesmo antes da crise, as taxas de juros reais a longo prazo estavam numa clara trajectória descendente. Não é certo que taxas de juros ainda mais baixas pudessem criar mais investimentos.
A questão fundamental permanece: o crescimento da procura adequada é possível nas economias modernas, sem prejudicar o crescimento do crédito?
O aumento das desigualdades sociais é um motor dessa aparente "necessidade de crédito". As pessoas ricas têm uma propensão marginal maior para economizar em comparação com os mais pobres. Quando os ricos ficam mais ricos, o crescimento do consumo pode diminuir, a menos que o sistema financeiro use as suas economias para emprestar a pessoas relativamente pobres .
Mas grande parte dessa dívida pode ser insustentável. O economista Raghuram Rajan, presidente do banco central da Índia, observou no seu livro "Fault Lines", que a expansão e contracção do mercado de hipotecas de alto risco nos Estados Unidos [crise do subprime] devem muito ao crescimento extremamente lento dos salários reais dos americanos com rendimentos mais baixos nas últimas três décadas .
Os desequilíbrios globais também contribuem para o aumento do risco associado à dívida. Superávits em conta corrente não são compensados por uma subida nos investimentos de capital a nível global, o que inevitavelmente resulta em reclamações e a um aumento da dívida pública e privada nos países deficitários. Algumas destas reivindicações provavelmente não são sustentáveis e cada uma delas pode contribuir para problemas de dívida no período pós-crise.
Um modelo de crescimento estável requer menos imparidades - ou seja, a dívida que financia a compra de activos, incentiva o consumo sem que traga soluções para corrigir as desigualdade ou as causas dos desequilíbrios globais insustentáveis. Na ausência de políticas específicas para limitar a dívida, a economia mundial está em risco de uma estagnação secular e de novos ciclos de instabilidade e crise.
Adair Turner. Antigo presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido é, actualmente, membro do Comité de Política Financeira do Reino Unido e da Câmara dos Lordes
Direitos de Autor: Project Syndicate, 2013.
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Tradução: João Maltez