Opinião
O Tibete e a próxima reencarnação
Um sinal do que está para vir ocorreu em Maio de 1995 quando o Dalai Lama anunciou que um menino de seis anos era a décima primeira reencarnação do Pachen Lama, a segunda figura do budismo tibetano. A anterior reencarnação falecera em 1989 e Gedhun Choeky
Uma posterior busca da reencarnação orquestrada por monges coniventes com Pequim identificou, recorrendo a um sistema de sorteio decretado em 1792 pelo imperador chinês Qianlong para resolver disputas entre religiosos tibetanos, outra criança da mesma idade e região como o verdadeiro Pachen Lama. Gyancain Norbu é o Pachen Lama, crismado por Pequim e desprezado pelos tibetanos.
O regime comunista estatuiu, posteriormente, em 2004, a obrigatoriedade de reconhecimento oficial por Pequim das reencarnações de monges eminentes.
O Dalai Lama admitiu, entretanto, que a sua reencarnação possa vir a ser identificada através de um referendo entre os fiéis budistas tibetanos.
O desconcerto é grande entre os seguidores do budismo tibetano já que o Dalai Lama é a própria encarnação humana da divindade da compaixão que renunciou ao nirvana para iluminar a humanidade.
Tudo isto pode parecer estranho, mas é nesta lógica que se joga a questão do Tibete e o desconcerto vai muito para além de um boicote à cerimónia inaugural dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Uma independência sem reconhecimento
A queda da dinastia Qing na China foi a oportunidade para o Tibete proclamar a independência. Em 1913 o décimo terceiro Dalai Lama expulsou os dignitários e militares manchus e chineses que Pequim mantinha desde o início do século XVIII no Tibete.
Os sucessores republicanos dos imperadores manchus em Pequim continuaram, no entanto, a reivindicar a soberania sobre o Tibete, apesar da longínqua província sempre ter mantido a sua autonomia administrativa e fiscal.
Lhasa, contudo, emancipava-se, de facto, da relação de patrocínio que desde o século XII os senhores mongóis da China (dinastia Yuan) tinham estabelecido com a aristocracia e as hierarquias religiosas tibetanas de quem recebiam legitimidade canónica.
À conquista do poder pelos comunistas em 1949 seguiu-se a tentativa de Mao Zedong levar os líderes tibetanos a aceitarem formalmente a integração do Tibete na China.
A promessa de autonomia cultural, religiosa e administrativa por período indefinido foi recusada pelas elites de Lhasa que tentaram em vão obter o reconhecimento da independência por parte dos Estados Unidos, da Índia e da ONU.
Este braço-de-ferro levou, em Outubro de 1950, o Exército de Libertação Popular a invadir Chamdo, a região oriental do Tibete, e o Dalai Lama, refugiado em Yadong, junto à fronteira com a Índia, viu-se forçado a enviar uma delegação a Pequim para negociar o “Acordo em 17 Pontos para a Libertação Pacífica do Tibete”.
Assinado em Maio de 1951, o acordo reconhecia a soberania chinesa sobre o Tibete, enquanto Pequim admitia que o Dalai Lama, então com 16 anos, mantivesse o sistema tradicional de governo até os tibetanos admitirem a adopção de reformas.
A partir de 1956, revoltas de camponeses tibetanos no Kham (na província chinesa de Sichuan) contra a colectivização deram origem a acções de guerrilha (pouco flageladores, mas com apoio da CIA até finais dos anos 60) e culminaram na contestação generalizada à presença chinesa.
A insurreição de Lhasa a 10 de Março de 1959 obrigou à fuga do Dalai Lama para a Índia e ao êxodo de mais de 80 mil refugiados.
A partir de então Pequim impôs o programa de colectivização e desmantelamento do sistema monástico tibetano que atingiu o auge na campanha anti-religiosa da Revolução Cultural.
Negociação impossível
Deng Xiaoping no final dos anos 70 lançou uma nova política para o Tibete. À campanha anti-religiosa sucedeu a autorização para reabertura limitada de mosteiros, uso da escrita tibetana e promoção de quadros administrativos locais, enquanto o governo central começava a investir nas infra-estruturas da região autónoma e eliminava as medidas de colectivização de agricultores e pastores nómadas.
Em 1982 e 1984 tiveram lugar conversações entre as autoridades chinesas e o governo tibetano no exílio.
O Dalai Lama, que fizera aprovar em 1963 uma “Constituição Democrática” para o seu governo no exílio de Dharamsala, insistiu no direito ao autogoverno à semelhança do modelo “um país, dois sistemas” que Deng aventava para Hong Kong, Macau e Taiwan.
Os negociadores do Dalai Lama reclamaram, ainda, a dissolução da Região Autónoma do Tibete, criada em 1965, de forma a agregar sob sua administração autónoma todas as áreas de povoamento tibetano no Qinghai, Gansu, Sichuan e Yunnan, apesar de o governo de Lhasa ter perdido o controlo efectivo da maior parte dessas regiões (Kham e Amdo) no século XVIII.
Para Deng Xiaoping o modelo “um país, dois sistemas” nunca poderia ser aplicado a uma região tida por parte integrante da China e o controlo do Partido Comunista não estava sujeito a discussão.
O fracasso das negociações levou o Dalai Lama a adoptar uma nova estratégia, assumindo o papel de líder político ante as opiniões públicas dos Estados Unidos, da Europa e do Japão.
Na primeira declaração relevante, em Washington, em 1987, o Dalai Lama reiterou o carácter ilegal da ocupação, apelou à desmilitarização de todo o Tibete (incluindo as regiões de Kham e Amdo) e à saída de emigrantes chineses, ao mesmo tempo que propunha “negociações francas e realistas” com Pequim.
No ano seguinte, no Parlamento Europeu, o Dalai Lama precisava que o Tibete, englobando as províncias históricas de Kham e Amdo, se deveria tornar numa “entidade democrática autónoma” associada à China.
Pequim manteria no Tibete apenas um número limitado de instalações militares para fins exclusivamente defensivos e manteria a responsabilidade pela política externa.
Direitos humanos e realismo estratégico
O Dalai Lama abandonava a reivindicação de independência, presumia a eventual negociação de autonomia, mas foi confrontado com críticas entre os tibetanos exilados à chamada “via intermédia”.
Em 1989, o Dalai Lama recebia o Prémio Nobel da Paz pelos esforços em prol de “soluções pacíficas assentes na tolerância e respeito mútuo de forma a preservar a herança histórica e cultural do seu povo”.
Mas ao mesmo tempo que o Tibete ganhava estatuto internacional como questão fulcral de direitos humanos, a contestação separatista em todas as áreas de povoamento tibetano sob controlo chinês subia de tom desde 1987, culminando em motins em Lhasa em 1998 e 1989.
Em Março de 1989, três meses antes do massacre de Tiananmen, a China via-se obrigada a impor a lei marcial no Tibete que iria vigorar durante um ano. De então para cá, tornou-se claro para os dirigentes comunistas que o irredentismo tibetano só poderia ser contido a longo prazo.
O pavão voa para ocidente
Daí resultou a adopção, em 2000, da política de “Grande Desenvolvimento do Ocidente”, abrangendo além do Tibete outras quatro regiões autónomas.
O objectivo essencial foi definido como uma “profunda transformação social” que permita integrar economicamente regiões atrasadas na economia nacional e preservar a unidade e segurança do estado.
A emigração chinesa, e no caso do Tibete de muçulmanos hui de língua chinesa, passou a ser apresentada como uma das componentes de “convergência nacional”, mas, até agora, os efeitos têm sido perversos.
O censo de 1990 referenciava 80 837 chineses com autorização de residência na Região Autónoma do Tibete, mas dez anos depois esse número subira para 155.300, numa população total de 2,62 milhões de habitantes.
Os registos oficiais admitiam, no entanto, que o número de emigrantes chineses sem autorização de residência ascendia recentemente a mais de 100 mil pessoas em Lhasa e a 50 mil em Shigatse.
As principais cidades do Tibete têm presentemente maioria chinesa e a emigração acelera desde a inauguração em 2006 da ligação ferroviária entre Lhasa e Golmund, no Qinghai.
As estatísticas oficiais de investimentos recorde no Tibete (mais 13 mil milhões de dólares foram previstos para 2007-2010) resultaram num crescimento económico de 14 por cento no ano passado. Entre a população tibetana impera, contudo, a mágoa de que a melhoria da sua situação material fica aquém dos ganhos dos emigrantes chineses han e hui.
O pavão voa para ocidente, conforme o dito com que Li Dezhu, o responsável de Pequim pela política face às minorias, apresentou a estratégia de integração nacional em 2000.
O pavão voa sobre o Tibete, é chinês por cultura, e faz ninho de comunista de mercado.
Um outro mundo
O décimo quarto Dalai Lama na sua actual encarnação dobrou sereno e amargurado a sétima década de vida neste mundo.
A “via intermédia” e a “não-violência”, estão longe de cativar a maioria dos 130 mil exilados e pouco sentido fazem ante a alienação cultural dos mais de cinco milhões de tibetanos sob controlo chinês, na região autónoma e nas províncias fronteiras.
“Palavras de Verdade” é o título de um poema que o jovem Dalai Lama lavrou em 1960, pouco depois de começar o grande exílio tibetano. Uma exortação que ainda hoje é evocada como património da piedade budista.
Piedoso povo da Terra das Neves
à mercê da impiedosa destruição das hordas bárbaras
ao serviço das trevas.
Que o poder da compaixão possa, sem demora,
conter o sangue e as lágrimas.
Ante a contestação violenta dos tibetanos em toda a China e a frustração do exílio um ciclo político está a chegar ao fim e o décimo quarto Dalai Lama fracassa na via da “não-violência”.
Afora devotos, ninguém reconhecerá à criança que reencarnar o actual Dalai Lama o prestígio que o antecessor averbou e é com isso que os comunistas de Pequim contam, mesmo que ignorem o que seja a compaixão budista que é um querer não perder a virtude de salvar outrem.
Outro mundo, por certo, que pouco tem a ver com a política pura e dura.