Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
04 de Maio de 2007 às 13:59

O ódio das Nações

Alguns dos Estados chegados à União Europeia em 2004 por mais que aspirem a comungar uma cidadania transnacional não podem, nem querem esquecer o passado recente. O esquecimento, o olvido de massacres e afrontas, é essencial para criar a ideia de nação, n

  • ...

Num fingimento de boas intenções, foi possível celebrar o cinquentenário do Tratado de Roma sem que se insistisse muito nas coincidências que a cronologia regista porque a ideia de cidadania europeia tenta confundir-se com a partilha abrangente de valores nacionais compatíveis com uma ideologia cosmopolita de compreensão humanista.  

O olvido, a que Renan chamava há mais de um século um propositado "erro histórico", cria nações, mas implica embaraços para a ideologia eurocrática de uma ideia europeia mais além dos êxitos das conflituosas cooperações económicas e judiciárias.

As fidelidades a que a ideia de nação obriga não são ideologia que salvaguarde um patriotismo à escala da União Europeia, nem têm de ser.

Portugal é nação e teve presidentes de ascendência judaica como Jorge Sampaio e outros de "limpeza de sangue" dúbia, na terminologia legada por quase três séculos de Inquisição, como é próprio de uma pátria velha que "esqueceu", no sentido de Renan, a ignominiosa expulsão de judeus, os escravos ou as devastações coloniais.

Seria, assim, pouco curial, em celebrações europeias, lembrar que em 1957, no ano do Tratado de Roma, a França, recém traumatizada pela derrota no Vietname, se perdia numa guerra colonial na Argélia, e acabava de sair de uma humilhação partilhada com o Reino Unido na investida fracassada contra o Egipto de Nasser, ou que a Bélgica estivesse prestes a precipitar o descalabro do Congo.  

A questão é que alguns dos estados chegados à União em 2004 por mais que aspirem a comungar uma cidadania transnacional não podem, nem querem esquecer o passado recente.

A MEMÓRIA E O SACRILÉGIO 

Afronta e massacre é a memória das nações e polacos, lituanos, letões e estónios, afora finlandeses, têm muito presente o telegrama de 25 de Dezembro de 1939 de Stalin ao ministro dos Negócios Estrangeiros de Hitler, Joachim von Ribbentrop, saudando a "amizade dos povos da Alemanha e da União Soviética forjada no sangue".

O pacto nazi-soviético de Agosto de 1939, prelúdio do deflagrar da guerra na Europa, saldou-se pela invasão soviética dos estados bálticos, a guerra contra a Finlândia, e a ofensiva na Polónia pelos hitlerianos e os stalinistas.

Muito sangue correu desde então, mas a identidade nacional de polacos, estónios, letões, lituanos e estónios faz-se, entre massacres sofridos, esquecendo cumplicidades de patriotas desvairados com os ocupantes nazis e soviéticos, ignorando vagas históricas de antijudaismo, contra a ideia de uma União Soviética libertadora e aliada das democracias ocidentais.

Quase meio século de ocupação soviética está demasiado presente e a memória de repressão e perseguições em massa justifica um alinhamento estratégico que impeça qualquer retorno da tutela de Moscovo.

É questão de afirmação nacional que leva a Estónia a entrar em confronto com a Rússia, precisamente antes do 9 de Maio, data em que Moscovo comemora a vitória na chamada "Grande Guerra Patriótica", ao desmantelar em Tallinn a estátua do "Libertador Soviético".

Para a maior parte dos 300 mil russófonos que fazem parte dos 1,3 milhões de habitantes da Estónia, a remoção do monumento do centro da capital mais do que um "sacrilégio", conforme qualificação da imprensa e autoridades russas, é a afronta a uma mitologia de sacrifício forjada numa guerra justa.

Estónios e russos partilham território na república do Báltico, mas falta-lhes a vontade de "viver em conjunto" e a memória de "grandes feitos em comum" que, na visão defendida por Renan, torna a nação um acto de vontade e um autêntico "plebiscito diário".
  
INTERLÚDIO CLÁSSICO

Vladimir Putin, que presidiu às cerimónias fúnebres do seu patrono Boris Ieltsin, principal impulsionador da dissolução da União Soviética, nunca hesitou em considerar publicamente tal evento como "a maior catástrofe geopolítica do século XX".

No funeral do primeiro presidente da Rússia nem uma palavra se ouviu sobre a catástrofe de 1991, antes foi exaltado o político que com a Constituição de 1993 consagrou a liberdade de expressão e batalhou pelo "renascimento e transformação da Rússia".

Dias depois calava-se o violoncelo de Mstislav Rostropovitch. Artista execrado e declarado traidor à pátria soviética de Brejnev, em 1974. Artista presente na queda do Muro de Berlim em Novembro de 1989, Rostropovitch, homem de arreigada convicção democrática, foi, também, enterrado em Moscovo com honras de estado.

No cemitério de Novodevitchi, um panteão da história russa, assim se vai inventando a memória da nação entre os túmulos de Khrutchev, Maiakovsky e Shostakovitch.

A QUESTÃO POLACA

Dois grandes nomes da história recente da Polónia, dois líderes do movimento Solidariedade, surgem na primeira linha de contestação à controversa lei da lustração do governo conservador de Varsóvia.

Bronislaw Geremek e Tadeusz Mazowiecki opõem-se à legislação imposta pelo partido Direito e Justiça, liderado pelos irmãos Lech e Jaroslaw Kaczynski, os gémeos que partilham a presidência e a chefia de governo.

Os dois resistentes recusam acatar a lei que pretende erradicar da vida pública antigos colaboradores ao regime comunista. Se a legislação de 1997 obrigava a uma declaração de não colaboração por parte de candidatos a eleições, altos funcionários e gestores públicos, interditando o exercício desses cargos em caso de perjúrio, a nova lei amplia o universo de potenciais declarantes, abarcando 52 profissões que vão de professores universitários a jornalistas, passando por advogados, num total de 400 a 700 mil pessoas nascidas antes de 1 de Agosto de 1972.

A lei entrou em vigor em Março por proposta do partido governamental e dos seus aliados populistas e da extrema-direita, além de contar com o apoio da direita liberal, e terá de ser aprovada este mês pelo tribunal constitucional de Varsóvia.

A recusa de nova prestação de uma declaração escrita de não colaboração com o regime comunista por parte de Geremek e Mazowiecki, sujeitando-se à proibição de exercerem funções oficiais e actividades profissionais de interesse público durante dez anos, é justificada pelo risco de uma caça às bruxas, violação dos direitos democráticos e afronta à autonomia das universidades e da comunicação social.

O Instituto da Memória Nacional, que tem à sua guarda os arquivos da antiga polícia política e é presentemente controlado por partidários dos gémeos Kaczysnki, procederá ao confronto das declarações com os documentos existentes, mas o risco de manipulações políticas e o carácter dúbio dos processos da burocracia comunista dificilmente permitirão conclusões claras sobre a veracidade de muitas respostas à pergunta "colaborou secretamente e com conhecimento com os antigos serviços de segurança comunistas?".

A atitude de Bronislaw Geremek actual deputado ao parlamento europeu, antigo ministro dos negócios estrangeiros, homem da direita liberal e notável historiador, e de Tadeusz Mazowiecki, político católico, chefe do primeiro governo democrático da Polónia em 1989, ou as críticas de Lech Walesa que fala num acto inquisitorial, não colhem contudo as simpatias da maior parte da opinião pública polaca.

Há muitas contas a ajustar na Polónia que, à semelhança da Espanha, fez a sua transição democrática por via negocial, evitando a purga sistemática dos responsáveis do antigo regime.

A própria igreja católica, que não é visada nesta lei da purificação, carece de legitimidade para contestar a "descomunização" engendrada pelos gémeos Kaczynski devido ao grande número de eclesiásticos que colaboraram com o regime comunista.

O Papa teve de desistir em Janeiro da nomeação de Stanilas Wielgus para arcebispo de Varsóvia depois de ter sido revelada a colaboração do prelado católico com a polícia política comunista.

O objectivo da direita conservadora e da extrema-direita é singelo: afastar da vida pública os principais adversários políticos insinuando a sua conivência com o regime comunista ora por via da colaboração, ora através de cedências nos acordos de 1989.

O governo de Varsóvia está em rota de colisão com Paris pela ameaça de retirar o mandato de eurodeputado a Geremek e é contestado pela maioria dos deputados de Estrasburgo pela sua campanha homofóbica, mas não irá ceder a pressões externas pois está em causa a sua visão ultraconservadora dos valores nacionais e uma arma política de eleição contra os opositores.

Tudo o que foi recalcado na Polónia desde os anos noventa por conveniência política está agora de volta pela mão da direita mais reaccionária num contexto em que a deriva autoritária da Rússia é usada para justificar a defesa intransigente de valores patrióticos de matriz ultraconservadora.  

Um passado de autoritarismo e intolerância religiosa e política não é fácil de alijar nem à direita, nem à esquerda, e a Polónia tem uma história de tal modo atormentada que tão cedo não terá sossego.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio