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Dreamocracy

É triste, para mim, ouvir tantos comentadores experientes manifestarem surpresa com a qualidade da presença e da intervenção da vice-presidente eleita. Como se uma mulher como Kamala Harris pudesse ter chegado onde chegou se não fosse absolutamente excecional.

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Nesta última semana, muitos de nós estivemos em suspense a acompanhar as contagens de voto das eleições americanas. No meu caso, é com alívio que vejo Donald Trump deixar de representar os Estados Unidos. Trata-se de uma figura cujo estilo de intervenção e até cuja presença física me causam desconforto. Quanto a este assunto, tenho três comentários a fazer.

1. A Vida Global: é importante reconhecermos a centralidade dos Estados Unidos no último século e a importância que assume eleger para a sua Presidência uma dupla bem preparada e respeitável, com quem o diálogo possa ser frutífero. Num momento em que enfrentamos crises à escala global – e foquemo-nos apenas na pandemia e na emergência climática – é essencial podermos contar com líderes sérios e que gerem amplos consensos quanto a prioridades como a defesa da vida humana, quer no imediato quer no médio prazo. Uma estratégia de futuro, seja para a Europa, seja para o mundo, tem de ser desenhada a várias mãos.

Na verdade, até o mundo das finanças está desperto para os novos desafios e Wall Street não deu mostras de abrandar com a eleição de Biden-Harris. O que é positivo. Claro que as reações dos mercados a 9 e 10 de novembro refletem também as notícias da Pfizer. Mas, mesmo se recuarmos ao início de 2020 (antes da globalização do coronavírus), e apesar de Trump, o setor financeiro nos Estados Unidos foi dando mostras de mudança e de estar desperto para novas considerações na alocação de investimentos, por exemplo, com a explicitação de critérios ESG.

De acordo com um relatório da Morningstar Direct relativo ao 1.º trimestre de 2020, um valor recorde de $45.6B foi alocado ao universo de fundos sustentáveis, com cerca de $33.1B na Europa e $10.4B nos Estados Unidos. 16 anos depois da carta que o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, enviou a 55 CEO e levou ao estabelecimento dos Principles for Responsible Management, assistimos, em janeiro de 2020, à iniciativa do CEO da BlackRock de escrever uma inspirada carta aos seus investidores, que também encaminhou a um conjunto alargado de CEO. Escreveu Larry Fink: “As a fiduciary, our responsibility is to help clients navigate this transition. Our investment conviction is that sustainability and climate-integrated portfolios can provide better risk-adjusted returns to investors.” Como, há muito, Bob Dylan escreveu, “times… they are a-changing”.

2. A Democracia: o segundo ponto que gostaria de salientar nestas eleições é a relevância da democracia, “We, the people”, como Biden e Harris repetiram. Não concebo viver numa sociedade em que os cidadãos são meros fantoches e em que a opinião, a vida e o voto de cada um não contam o mesmo. Mas o mundo atual, com a enorme quantidade de informação e desinformação que circula, traz-nos grandes dificuldades em garantir um elemento essencial de uma democracia “funcional”: que os cidadãos sejam bem informados e tenham a formação suficiente para saberem escolher. Como garantir e onde encontrar informação fidedigna? Que educação dar aos mais novos? Não são perguntas com resposta simples.

Porém, o que muitas vezes encontramos – mesmo nas democracias – é um enfoque desproporcional dos políticos, dos media e dos opinion makers em questões para as quais, na verdade, ninguém tem a solução perfeita e todos querem marcar pontos diariamente. A crítica permanente “ao sistema” (seja aos políticos, seja ao sistema financeiro, por exemplo) em que vivemos tornou-se uma forma de estar. Se tem o aspeto potencialmente positivo de manter vigilância sobre os decisores, também tem o aspeto potencialmente negativo de afastar os mais novos de um sistema em que não querem participar, a que atribuem uma conotação negativa. Ou seja, tem de haver verdade. E alguns consensos essenciais quanto a isso.

Uma democracia eficaz, que mobilize as diferentes gerações, tem de ter um elemento aspiracional. Tem de ser uma dreamocracy, em que, apesar das divergências de opinião quanto a algumas escolhas, existem fortes elementos de convergência na defesa de um bem maior, um desígnio comum, que mantém a chama viva e o interesse naquilo que poderemos fazer no futuro. Esse elemento de “sonho/ambição” tem de fazer parte da vida coletiva, mesmo quando estamos despertos.

3. Kamala Harris: não posso deixar de referir o discurso de Kamala Harris na noite de sábado. É triste, para mim, ouvir tantos comentadores experientes manifestarem surpresa com a qualidade da presença e da intervenção da vice-presidente eleita. Como se uma mulher como Kamala Harris pudesse ter chegado onde chegou se não fosse absolutamente excecional. Para além das palavras, saúdo em especial a homenagem que prestou às sufragistas, ao vestir-se integralmente de branco. Exatamente 100 anos depois da 19.ª Emenda da Constituição, que reconheceu o direito de voto às mulheres nos Estados Unidos. Que não seja a última!

P.S. - Cabe aqui um agradecimento à Prof. Ana Moutinho, a quem “roubei” o título desta crónica. Promoveu uma semana inesquecível de grande debate e eleições entre os estudantes, sendo que agora três deles (presidente e dois VP desta dreamocracy) são conselheiros da presidência do ISEG. É assim que se faz: formam-se excelentes economistas e gestores, que se formam também enquanto bons cidadãos: informados, despertos, líderes da mudança. Nota: a dreamocracy deste artigo não deve ser confundida com um documentário que existe com a mesma designação nem com um think tank com igual designação.

 

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