Opinião
O ecrã faz tudo
A janela é o ecrã mais antigo que conhecemos. O nosso olhar para fora de casa começou por passar por ali. A realidade hoje é outra.
"Uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais mostra, menos se sabe."
Diane Arbus
O ecrã faz tudo
A janela é o ecrã mais antigo que conhecemos. O nosso olhar para fora de casa começou por passar por ali. A realidade hoje é outra. A janela é apenas mais um ecrã entre os muitos que fazem parte do nosso dia-a-dia. Frequentemente, tenho à minha volta mais ecrãs que janelas, e cada ecrã traz-me uma realidade diferente - algumas que escolho pessoalmente, outras que me são trazidas. A televisão é uma delas. Há uns anos, era a única janela alternativa e podíamos apenas olhar para o que ela nos trazia, agora podemos escolher o que queremos que ela nos traga entre centenas de canais, podemos escolher a nossa programação, ver o que nos interessa em gravações depois da sua emissão. No meio disto, as transmissões desportivas, de futebol, continuam a ser os programas mais vistos. Basta dizer que, dos dez programas com maior audiência até agora, oito foram transmissões de futebol - a excepção foi para um Jornal da Noite do início da pandemia e para uma emissão de Isto É Gozar Com Quem Trabalha no primeiro período de confinamento. Desporto e notícias, que só fazem sentido quando vistas em directo, são o seguro de vida dos canais para manterem as suas audiências. Quase tudo o resto pode ser visto de outra forma. Muitas pessoas já vêem séries e filmes noutros ecrãs que não o da televisão, e um dos ecrãs mais atingidos com a pandemia foi o das salas de cinema. Gus Van Sant, um cineasta norte-americano, constata que este ano o cinema foi empurrado para o ecrã dos computadores, aliás como boa parte das nossas vidas neste 2020. E desabafa: "É um bocado estranho estar a ver cinema no mesmo ecrã de computador onde fazemos as compras de mercearia."
• Registaram-se mais 103 mil desempregados em Outubro que no mesmo mês do ano passado e o nível de desemprego está 34% acima do registado em Outubro de 2019 • nos primeiros oito meses deste ano, venderam-se mais de 13 milhões de embalagens de ansiolíticos e antidepressivos, o valor mais alto dos últimos três anos • uma análise ao mapa de risco da covid-19, com base em informação compilada pela Marktest, mostra que, nos dois grupos de concelhos de maior risco, vive 69% da população e concentra-se 68% do seu poder de compra • segundo um inquérito recente, dois terços dos frequentadores habituais de restaurantes deixaram de o fazer desde que se iniciou o novo estado de emergência; segundo a Associação Nacional dos Restaurantes, a crise da pandemia já terá criado 40 mil desempregados no sector • um estudo do Ministério do Trabalho indica que 66% das empresas não têm ninguém em teletrabalho • impostos, taxas e outras tributações representam 46% das contas de energia eléctrica em Portugal • de acordo com o estudo "Os Portugueses E As Redes Sociais", da Marktest, 33,2% dos portugueses com perfil criado em redes sociais afirmam já ter feito compras diretamente numa rede social • desses, cerca de 75% fizeram a última compra através do Facebook e 20% através do Instagram.
Dixit
"Coexistirão dois países entre 27 e 29 de Novembro: o do PC e o nosso."
João Gonçalves
No reino das motorizadas lusitanas
Durante algumas décadas, existiu em Portugal uma indústria de fabrico de motorizadas, derivadas da formulação bicicletas com motor auxiliar - limitado a 50 cc -, e que era possível guiar com carta de bicicleta, na altura obrigatória para andar, mesmo a pedal, na via pública. Começaram por imitar motos estrangeiras, mas cedo desenvolveram modelos desenhados em Portugal, algumas vezes com motores importados, outras com motores fabricados localmente. As Casal, Zundapp, Famel ou Sachs, para citar só algumas, foram o meio de transporte que cresceu no Portugal rural e ajudou a transformar a paisagem. Sobretudo no pós-guerra, e até final da década de 1970, cresceram os modelos, aperfeiçoou-se a qualidade e algumas fábricas sobreviveram até ao início deste século.
A história da indústria portuguesa de motociclos é agora contada por Pedro Pinto, motociclista e ex-piloto desportivo, num magnífico álbum intitulado "As Motos Da Nossa Vida", editado pela Quetzal, e que nos leva ao início do fabrico dos primeiros velocípedes com motor a petróleo, fabricados no Porto no final do século XIX. Fala-se da Famel, sediada em Águeda, a Diana em Sangalhos, os motores Alma e as correspondentes Motalli em Vila Nova de Gaia; a Casal tinha uma oficina de montagem na Avenida da República, em Lisboa, e mais tarde deteve uma fábrica em Aveiro. O livro é profusamente ilustrado com imagens dos modelos de cada marca, das instalações fabris e até das numerosas provas desportivas que se realizavam por todo o país com motorizadas por cá produzidas. "As Motos da Nossa Vida" revisita as pequenas e grandes fábricas que, um pouco por todo o país, inventaram e desenharam modelos, criando riqueza e emprego, exportando milhares de exemplares e transformando o dia a dia do transporte de tanta gente. O álbum, de capa dura, tem cerca de 200 páginas e é um memorial precioso do que foi uma época do motociclismo nacional, antes dos sucessos agora obtidos por pilotos como Miguel Oliveira.
O barco vermelho
No grande "hall" de entrada do Museu Berardo está uma enorme peça de madeira, longa e curva, a face superior pintada de vermelho. É como se fosse a forma bruta, não trabalhada, do casco do barco, longilíneo, negro, com o interior a vermelho, que é a peça central da exposição "Dar Corpo Ao Vazio", de Cristina Ataíde, inaugurada esta semana naquele museu. A terra, a água e uma evocação da presença humana passam pelas cinco salas onde se desenvolve a exposição, entre esculturas, desenhos de grandes dimensões, uma instalação, fotografias e um vídeo - as áreas em que Cristina Ataíde tem trabalhado. A cor vermelha é uma constante na sua obra, nas suas várias facetas e nos suportes utilizados, do papel à escultura. Sérgio Fazenda Rodrigues, o curador da exposição, sublinha no texto que elaborou que a produção de Cristina Ataíde "revela uma sede de experimentação e um fascínio pela descoberta que, entre outros, se ancora no impulso da viagem, na procura por outros sistemas de pensamento e numa busca pela expressão da matéria". Nas cinco salas onde se desenvolve a exposição viaja-se pelos pilares da obra de Cristina Ataíde, com referências cruzadas, mas sempre com a afirmação da sua identidade criativa. A exposição fica patente no Museu Berardo até 14 de Março de 2021.
Outras sugestões: a Galeria Módulo (Calçada dos Mestres, 34) apresenta 20 pinturas de Ana Mata, realizadas entre 2018 e 2020. E, na Galeria das Salgadeiras (Rua da Atalaia 12), Daniela Krtsch apresenta, até 30 de Janeiro, novas obras de pintura sob a designação "Please be quiet, please", uma metáfora destes tempos que atravessamos.
Arco da velha
O vereador da Educação da Câmara Municipal de Lisboa, Manuel Grilo, ameaçou dar "um par de murros nas fuças" a um vogal da Junta de Freguesia do Areeiro, Luís Moreira.
O dia da orquestra
Sérgio Godinho é um dos maiores escritores de canções da música portuguesa. Poucos autores se podem gabar de terem composto tantos temas que se tornaram famosos e que fazem parte do melhor da história da nossa música popular. Em quase 50 anos de carreira, gravou 18 álbuns de originais, o último dos quais, "Nação Valente", data de 2018. Ora, foi nesse mesmo ano que Sérgio Godinho realizou, no Teatro São Luiz, em Lisboa, uma série de concertos, entre 5 e 8 de Julho. Pela primeira vez na sua carreira, tocou acompanhado por uma orquestra, neste caso a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida pelo maestro Cesário Costa. O piano e os arranjos para orquestra ficaram a cargo de Filipe Raposo e no palco estavam também, como habitualmente, Os Assessores, grupo que o vem acompanhando ao vivo - Miguel Fevereiro (guitarras eléctricas e acústicas, percussão, coros), Nuno Espírito Santo (baixo, percussão), João Cardoso (teclados, samplers, coros), Sérgio Nascimento (bateria, percussão) com direcção musical de Nuno Rafael (guitarras eléctricas e acústicas, cavaquinho, lap steel guitar, percussão, coros). Godinho, agora com 75 anos, tem mostrado uma capacidade de se rodear bem em termos musicais, e este disco não é excepção. Sobre esta série de concertos, sublinha: "Há espectáculos de que continuamos a falar muito tempo depois, houve uma chispa. Não se apagou." Essa chispa está bem presente nos 15 temas que o disco inclui, desde "Com Um Brilhozinho Nos Olhos", até "A Noite Passada", "A Deusa do Amor" ou "O Primeiro Dia", mas também em canções menos conhecidas como "O Velho Samurai". Sérgio Godinho inclui dois temas que são uma homenagem a dois contemporâneos com quem trabalhou - evoca Zeca Afonso em "Endechas a Bárbara Escrava", um tema que Zeca compôs sobre um poema de Camões, e evoca também José Mário Branco numa canção que com ele escreveu ("Mariana Pais, 21 Anos") para o álbum "Nação Valente". Os arranjos de Filipe Raposo respeitam as canções e dão-lhes uma sonoridade diferente com um acompanhamento orquestral - e diga-se que Sérgio Godinho adapta muito bem a sua interpretação a este novo pano de fundo musical. Já disponível em CD e nas plataformas de streaming.
Guloseimas de época
O português, já se sabe, é uma língua muito traiçoeira. Há palavras que só se devem usar no singular. Por exemplo, é sempre mais elegante dizer tomate do que tomates, assim como é menos dúbio dizer que se gosta de marmelo do que de marmelos. Adiante na brejeirice…, vem isto a propósito de eu gostar de fruta da época e o marmelo ser uma delícia de outono. Nesta altura, gosto dele cozido ou, ainda melhor, assado, levemente tostado, sempre com pouco açúcar e bastante canela. Para consumo posterior, o petisco mais imediato é geleia de marmelo com nozes, uma verdadeira delícia. E, depois, para consumo faseado ao longo do ano, a verdadeira e genuína marmelada é sempre apreciada. Em matéria de geleia e marmelada, além de umas artesanais que algumas pessoas me oferecem, a minha preferência vai para as que são confeccionadas pela Cister, na Rua da Escola Politécnica. A receita mais afamada é a do Convento de Odivelas. No Porto, a Casa Ramos vende uma marmelada muito elogiada, produzida em Cinfães sob a marca Memórias. Em matéria de sobremesa de marmelo cozido ou assado, o Salsa & Coentros e o Apuradinho, em Lisboa, são incontornáveis.