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O oceano tem centenas de problemas. Não pode haver um planeta saudável sem um oceano saudável e a saúde dos oceanos está em declínio mensurável. Peter Thomson, enviado especial do secretário-geral das Nações Unidas para os Oceanos, olha para a ciência, tecnologia e economia como a chave para corrigir a trajetória levada a cabo até agora. Em entrevista ao Negócios fala da importância desta Conferência dos Oceanos e espera que Lisboa seja o porto de partida para o lançamento de uma grande frota de soluções para os problemas dos oceanos.
Quais são os principais problemas dos oceanos e o que espera desta conferência para os solucionar?
Temos a poluição, seja de plástico, químicos, excesso de nutrientes provenientes da agricultura ou poluição da indústria. Temos a sobrepesca e a pesca ilegal. E, claro, temos a destruição de habitats, como os mangais, as ervas marinhas, etc., que são muito importantes para o bem-estar dos oceanos e para o nosso, porque são grandes sequestradores de carbono. Mas provavelmente o mais perigoso para nós será os efeitos das emissões de gases com ef eito de estufa sobre os oceanos. O oceano absorve a maior parte do calor na atmosfera e chega a um ponto em que as coisas começam a mudar porque o oceano está a ficar demasiado quente. E isto é realmente assustador, porque para além da morte dos recifes de coral, dos quais depende 25% da biodiversidade marinha, há a mudança nas correntes oceânicas, nos ecossistemas marinhos, como em Svalbard. Recentemente, os cientistas disseram-me que o ecossistema de lá já não é ártico, é agora um ecossistema do Atlântico Norte. Outra coisa que vem com o aquecimento do oceano é a expansão da água. Os lençóis de gelo estão a derreter e isto é péssimo para lugares como o Bangladesh, para cidades urbanas que estão perto dos níveis de maré alta, etc. É uma questão existencial.
O que procuramos em Lisboa são centenas de soluções que resolvam estes problemas. Os Estados-membros têm apelado especificamente a soluções baseadas na ciência. E pedem parcerias e inovação no fornecimento destas soluções. É esse o foco da conferência e estou muito confiante, pelo que estou a ver, de que isso se concretizará.
E ainda vamos a tempo de parar o declínio dos oceanos?
Se olharmos para a poluição, é uma questão de mudar comportamentos e de legislar em todo o mundo. Tivemos muito boas notícias vindas de Nairobi, em fevereiro, quando se concordou em iniciar negociações para um tratado internacionalmente vinculativo para acabar com a poluição plástica. Essa foi uma notícia muito boa que será amplificada em Lisboa.
Outra questão, mais de 30% dos recursos estão a ser sobrepescados em todo o mundo e isto será alvo de uma enorme atenção em Lisboa. Também tivemos agora esta grande notícia do Conselho Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, onde, após 20 anos de negociações, concordaram em proibir subsídios prejudiciais à pesca. Isto receberá também grande impulso em Lisboa, porque um acordo como este na OMC tem de ser ratificado por todos os países. Portanto, estes problemas têm origem humana e temos soluções que podem ser concretizadas pelo Homem. Obviamente, a questão das emissões de gases com efeito de estufa é muito mais difícil de resolver, porque o que já fizemos ao oceano, como a acidez e o aquecimento, levará muito mais tempo a parar. Mas o que fizermos agora pode abrandar o ritmo e começar a inverter o declínio.
Os Estados-membros vão assinar a Declaração de Lisboa na Conferência dos Oceanos. O que está nessa declaração?
A declaração foi negociada durante muitos anos ao nível da Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque. Foi lá que foi alcançado o consenso, pelo que não temos de a negociar em Lisboa, tudo o que temos de fazer é adotá-la. Não quero parecer muito otimista, mas sinto uma onda de progresso - se olharmos para Nairobi e para o que aconteceu lá, se olharmos para Genebra e para o que aconteceu lá, se olharmos para Nova Iorque e para o que aconteceu lá. Em Lisboa, estaremos apenas a avançar nesta onda. A minha visão é que iremos lançar uma grande frota de soluções em Lisboa, para os problemas dos oceanos, e essa frota irá levar-nos para a frente nos próximos anos para inverter o declínio da saúde dos oceanos.
Os cientistas dizem que os oceanos têm sido um pouco esquecidos nas questões das alterações climáticas e que é preciso estabelecer o nexo entre clima e oceanos. A verdade é que esta é apenas a segunda conferência sobre os oceanos.
Concordo plenamente. Quando fui presidente da Assembleia Geral da ONU, fui responsável pela primeira Conferência dos Oceanos, em 2017. E porque é que realizámos essa conferência? Exatamente pelo que disse, o oceano estava em falta nas discussões internacionais. Depois disso, houve uma consciência muito maior de que temos de fazer algo sobre o declínio dos oceanos e foi isso que levou à realização da segunda conferência, em Lisboa.
Na Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP) de Glasgow houve uma decisão histórica de incluir os oceanos no trabalho da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), o secretariado da ONU para as Alterações Climáticas, porque tem de haver um diálogo anual sobre o nexo oceano-clima. A primeira reunião desse diálogo teve lugar recentemente em Bona e penso que podemos estar muito satisfeitos com os resultados. O nexo oceano-clima é agora reconhecido como estando no centro da crise climática, porque não se pode separar os dois. E isto tem implicações muito importantes para a COP28, a realizar em novembro de 2023. Queremos ver investimento real à escala do desenvolvimento sustentável da economia azul. Portanto, há grandes implicações no facto de o nexo oceano-clima estar agora no centro das atenções, e Lisboa irá amplificá-lo.
Relativamente ao alto-mar, que representa cerca de metade do planeta, é muitas vezes referido como uma espécie de "zona sem lei"? Mas há um tratado em negociação.
Sim, o BBNJ, o novo tratado de biodiversidade fora da jurisdição nacional, mas a maioria das pessoas chama-lhe tratado do alto-mar. Não é verdade dizer que não existe lei no alto-mar. Temos a UNCLOS, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que tem muitas disposições que se relacionam com o alto-mar. Temos a Organização Marítima Internacional, que tem leis sobre o que é feito no alto-mar. Temos a Comissão Baleeira, que abrange as atividades no alto-mar. E, muito importante, temos organizações regionais de gestão das pescas que cobrem a maioria do alto-mar e que supostamente gerem o que é capturado nessas águas. Portanto, todas estas coisas já estão em vigor, mas precisamos de as reforçar. Dito isto, há este tratado do alto-mar em negociação. Estamos muito esperançados de que seja concluído este ano ou muito pouco tempo depois. É um tratado robusto, mas operável. Vai ser um grande passo em frente se for acordado.
Falemos agora de economia azul. Haverá um evento especial no Estoril dedicado à economia azul, o Fórum de Investimento em Economia Azul Sustentável (SBEIF). Qual o papel das instituições financeiras, da tecnologia e da ciência para alcançar este novo mundo de oceanos sustentáveis?
Esta é uma bela descrição, um novo mundo de oceanos sustentáveis. Digo repetidamente que a economia azul sustentável é o futuro da segurança humana. Só penso no futuro, na verdade, porque tenho quatro netas. Mas estamos a condená-las a condições terríveis. Dois a três graus no aquecimento global é um mundo de fome, de inundações, de fogo. Todo o nosso trabalho pragmático deve ter isso em mente. Assim, quando falamos de financiamento da economia azul sustentável, estamos a falar de algo que é essencial para a segurança dos nossos netos.
Na energia, temos de deixar os combustíveis fósseis para sempre, caso contrário, estamos tramados. E como é que os substituímos? O oceano pode fornecer-nos toda a energia de que precisamos. Tudo o que temos de fazer é investir nele, seja na eólica offshore, seja na energia das ondas e das marés. São centenas de milhões de dólares para fazer o que acabei de descrever.
Pensemos na comida. Se vamos comer do oceano, temos de deixar de ser caçadores e coletores. Esta é uma atividade muito primitiva. Deveríamos ser agricultores do oceano. Tratar o oceano de uma forma respeitosa e só tirar do oceano o que ele nos pode dar. Por exemplo, devíamos deixar de comer peixes grandes e comer mais produtos à base de algas. Mas temos de pensar em como os produzir, para não colocarmos o fardo novamente no oceano. Portanto, uma agricultura verdadeiramente sustentável requer investimento.
Se olharmos para toda a indústria farmacêutica, o que vamos fazer quando os antibióticos já não forem eficazes? Temos de encontrar novas formas de medicina, e o mar é o lugar óbvio para isso. Porquê? Porque é aí que existe a grande maioria da biodiversidade e da vida neste planeta. Mais uma vez, isso requer um enorme investimento e governação.
A transição do setor naval, por exemplo. O hidrogénio verde está a chegar rapidamente e não é poluente. Portanto, o que estou a dizer ao setor privado e ao setor público é para serem ousados. Se queremos ter um futuro sustentável, precisamos de desenvolver a economia azul sustentável. E esta será a mensagem central no fórum de investimento que se vai realizar no Estoril.
O problema talvez seja que muitas das soluções baseadas na tecnologia e na ciência não estarão ainda maduras?
Penso que haverá muito mais clareza sobre isso depois da conferência de Lisboa. Há muitas soluções que estão maduras e só precisam de investimento.
Que papel pode Portugal ter neste novo mundo, uma vez que temos uma grande jurisdição oceânica que pode duplicar nos próximos anos, além de estarmos a investir nas energias renováveis e noutras fileiras da economia azul?
Antes de mais, quero agradecer e felicitar Portugal pelo que tem feito na correalização da Conferência dos Oceanos. Em segundo lugar, mencionou os desenvolvimentos que estão a acontecer em Portugal. Tenho estado muito consciente disso. Olho para Portugal como estando entre os países líderes no desenvolvimento da economia azul sustentável. Em terceiro lugar, o recente anúncio da Área Marinha de Proteção Total das ilhas Selvagens, a maior do Norte do Atlântico, foi fantástico. Não podemos subestimar a importância disso para os ecossistemas marinhos circundantes. Por tudo isto, Portugal merece os nossos parabéns e agradecimentos. O que é que eu esperaria de Portugal? Diria liderança continuada após a conferência, particularmente no seio da União Europeia (UE), porque, de um modo geral, a UE tem sido positiva para os oceanos, mas há elementos dentro da UE que são negativos quando se trata do bem-estar dos oceanos. Por isso, gostaria de ver Portugal, e mais um ou dois países que são positivos para os oceanos, a manter a batalha dentro da UE, para garantir que não se trata apenas de falar, mas que as pessoas estão realmente a fazer a coisa certa no que toca à poluição, à sobrepesca e gestão das pescas e a fazer a coisa certa em termos das emissões de gases com efeito de estufa, que estão a envenenar o mundo.
Existe o objetivo de alcançarmos 30% de proteção das áreas marinhas em 2030. Os países estão a comprometer-se com este objetivo?
Há uma proposta para que 30% do planeta seja protegido até 2030 e cerca de 100 países estão alinhados. Essa proposta será certamente ampliada na Conferência dos Oceanos. Porque se sabe que 30% significam também 30% do oceano. Mas o lugar onde se tornará num alvo global é a Convenção sobre Biodiversidade, que se realizará no final deste ano. Lisboa construirá para se adotar esses 30 por 30. Falei sobre esta onda positiva que está a varrer o mundo. E estes 30 por 30 fazem parte dessa onda.
António Guterres pede mais ação nesta conferência. É também essa a sua expectativa?
A 100%.