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Os fundos nunca podem justificar os projetos

Empresários admitem viver “tempos de incerteza”. Todos os dias há problemas de entrega de matérias-primas e inflação. Um desafio para a gestão. O PRR é mais uma ferramenta para ajudar a minimizar os efeitos da crise, reconhecem.

19 de Julho de 2022 às 15:00
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Foto em cima: António Nogueira Leite, da Hipoges, Gonçalo Vale, da Mendes Gonçalves, Luís Abrantes, da Movecho, e Pedro Dominguinhos, presidente da comissão de acompanhamento do PRR, num debate sobre o papel do PRR moderado por Diana Ramos, diretora do Negócios. 


"O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é importante para as empresas, independentemente de estarem no interior ou no litoral, porque desde que as empresas tenham qualificações e consigam aceder é uma ferramenta importante", referiu Luís Abrantes, administrador da Movecho, no painel de debate sobre o PRR e financiamento da conferência Caixa Negócios em Portugal. Tanto mais importante quando se vive uma época de mudança, "de claro desassossego" e, para Luís Abrantes, "o PRR escreve o futuro que, no nosso caso, tem a ver com a descarbonização e a transição digital, porque é um novo paradigma e nenhuma empresa de futuro poderá passar ao lado".

Na sua opinião, o PRR é uma rampa de lançamento do que vai ser o PT 2030. O PRR "é curto e demasiado temático para responder às necessidades das empresas, porque estas não vivem apenas da descarbonização e da economia digital, mas neste processo as empresas têm de se requalificar e modernizar-se e o próximo quadro comunitário deverá dar respostas às outras necessidades das empresas". E sublinha que "hoje nenhuma empresa pode passar ao lado da digitalização, a indústria 4.0. Como destaca Luís Abrantes, "se não formos 4.0, a curto prazo seremos zero".

Para o administrador da Movecho as agendas mobilizadoras e inovadoras são uma "boa ideia", porque incentivam a aproximação das empresas, a troca de conhecimentos e trazem inovação e conhecimento para dentro das empresas. 

"Hoje todos falamos de inovação e não há forma de passar ao lado, mas a inovação não se decreta, tem de haver uma cultura de inovação nas empresas e para isso as empresas precisam de conhecimento e de talento para inovar." 

Gerir um cocktail 

A Movecho, de Nelas, entrou em três consórcios de agendas mobilizadoras, mas só um avançou para a fase de negociação, por isso a empresa vai apresentar esses projetos no âmbito do PT 2030. "As empresas precisam das universidades, do conhecimento que há nos centros de investigação, mas há um distanciamento muito grande. Tenta-se muitas vezes uma aproximação com as universidades mas as coisas não são fáceis. Não estou a falar da Movecho em que a relação tem corrido bem", sublinha

A empresa liderada por Luís Abrantes tem feito muitos projetos de inovação sobretudo em parceria com o IAPMEI e os seus fundos, mas "os fundos nunca podem justificar os projetos, porque se isto acontecer algo está errado na estratégia da empresa". "Os fundos alavancam a rapidez da sua execução nas estratégias e apoiam os projetos", insiste.

Para o empresário, "as empresas estão a viver um momento de fulgor com dificuldades em dar resposta às suas carteiras de encomendas". No setor das madeiras, dá o exemplo, faltam cerca de 5 mil pessoas, "temos dificuldades na formação". "Todos os dias há problemas tanto de entrega de matérias-primas como de inflação. Há muitas variáveis para as quais não estávamos habituados, temos um cocktail a gerir todos os dias, é o maior desafio à gestão de que tenho memória", detalha.

Administração pública mais digital e eficiente

António Nogueira Leite, administrador da Hipoges, descreveu os tempos que correm como "muito desafiantes" e sublinhou que o PRR é um reforço de apoio às economias europeias e sobrepõe-se ao Portugal 2020 e ao Portugal 2030, que continuam. Considera que, do ponto de vista da execução, "não deveria colocar nenhum problema em especial, porque o PRR obedece a um formato de política europeia, que tem diferenças de país para país, mas que tem linhas consentâneas com políticas europeias e que são a descarbonização e a digitalização".  

Na sua perspetiva, o programa foi bem pensado, mas "por razões que o Governo não admite", porque consegue colmatar "o período mais longo de desinvestimento público que tivemos na nossa história desde o 25 de Abril de 1974 no próprio Estado". Para o gestor não é uma questão de opinião, mas de números. "O stock de capital público em Portugal decaiu pela primeira vez na história a partir de 2013. Decaiu todos os anos, porque se considerarmos regras de amortização de capital temos um stock público menor."

Capitalização das empresas

António Nogueira Leite entende que faz sentido que o Governo utilize estas subvenções para suprir as falhas de investimento público. Acresce ainda que "o que nos precisamos casa bem com o PRR, tal como foi definido e por uma razão muito simples: uma das coisas que precisamos de fazer é utilizar o processo de transformação digital para melhorar o funcionamento da nossa administração pública e em alguns subsistemas da administração pública como as escolas do básico e secundário, Serviço Nacional de Saúde".

O que nós precisamos casa bem com o PRR, tal como foi definido e por uma razão muito simples. Uma das coisas que precisamos é utilizar o processo de transformação digital para melhorar o funcionamento da nossa administração pública. António Nogueira Leite
Administrador da Hipoges

"Houve muitas queixas da dimensão dos apoios ao Estado, mas não veria esse aspeto como negativo porque havia que superar o que não foi feito nos anos anteriores na administração pública, e este foi o racional que esteve por trás e faz todo o sentido", considerou o administrador da Hipoges. Nogueira Leite concorda que é importante melhorar os ambientes colaborativos entre empresas, universidades e centros de investigação. Esta componente do PRR financia e estimula as plataformas de contacto e de criação de benefícios, que depois reverterão para as empresas, é também uma fonte de aplicação de conhecimento, "e até de financiamento para alguns centros de investigação".

Depois das linhas mestras para o PRR enunciadas pela União Europeia com as componentes para a descarbonização e a transformação digital, existe uma parcela importante para a capitalização das empresas. "Este é um aspeto crucial porque sabemos que historicamente as empresas portuguesas eram e continuam a ser descapitalizadas quando comparamos com outros parceiros da União Europeia", disse António Nogueira Leite. 

Cabo das Tormentas

O gestor e professor da Nova SBE referiu-se ainda a incerteza associada ao atual contexto de inflação e subida de taxas de juros e a sua relação com a dívida pública. "Há um lado que é extremamente positivo e que tem a ver com a famosa sorte do primeiro-ministro. A inflação vai-lhe facilitar a gestão a médio e longo prazo da dívida pública, porque, pelo simples efeito da inflação, vamos ter um progresso enorme na redução da dívida pública, e um impacto muito positivo nas receitas fiscais". 

Mas primeiro, para António Nogueira Leite, é preciso passar o cabo das Tormentas. Explicou que, "quando o BCE disse que o programa de compra de dívida ia acabar, os mercados começaram a atacar os países mais frágeis, os que hoje estão mais endividados e têm economias mais fracas. Por isso, o BCE veio na semana seguinte dizer que ia montar um outro programa de compra de dívida". 

Se isto acontecer, a política da União Europeia "dá-nos uma segurança razoável, embora sofrendo o impacto de uma crise que vai ser geral, recentes números da economia alemã mostram uma recessão nos próximos tempos na Alemanha e, por arrastamento, para outros países como Portugal. Se esses mecanismos forem estabelecidos e funcionarem, o nosso perigo, que é por via do aumento do custo do financiamento público haver um corte ao financiamento do país, estará mais longe."

PRR é baseado em resultados

As agendas mobilizadoras implicam 3 mil milhões de incentivos com 7 mil milhões de investimentos e criarão uma dinâmica na relação das instituições de ensino superior com o mercado, sobretudo com uma orientação internacional. "No PRR a parte da resiliência tem um aspeto significativo e é sobretudo investimento no Serviço Nacional de Saúde, mas também é investimento nas qualificações. O primeiro concurso que foi aberto a 21 de junho de 2021 foi dirigido ao Impulso Jovem e Impulso Adulto na questão da formação superior nas universidades e politécnicos", sublinhou Pedro Dominguinhos, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR. 

No PRR, a parte da resiliência tem um aspeto significativo e é sobretudo investimento no Serviço Nacional de Saúde, mas também é investimento nas qualificações. Pedro Dominguinhos
Presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR

Na sua opinião o PRR tem num modelo diferente de apoios públicos europeus porque é baseado em resultados. Por exemplo, os adiantamentos que vão ser feitos às agendas mobilizadoras na ordem dos 10% serão seguidos de pagamentos adicionais baseados nos indicadores que os diferentes consórcios vão conseguindo. "Esta é uma alteração profunda de orientação para resultados, que se pretendem transformadores dos diferentes projetos."

Hoje está-se numa segunda fase de aceleração dos avisos e das aprovações que estão no terreno, mas também em muitos projetos que já estão concretizados. "Em termos de digitalização das escolas, lembro a atribuição dos computadores, que teve um aspeto significativo com a entrega de algumas centenas de milhares de computadores às famílias e, no ensino superior, a criação de várias ofertas formativas que procuram responder a esta escassez de qualificações e também a adaptação entre o que as empresas necessitam e que o mercado exigirá agora e no futuro".

O desafio é a aceleração da concretização dos projetos, o que é essencial para ter não só o impacto na execução, que é fundamental, mas também impacto de qualidade e de transformação nessa execução. Há obstáculos como a falta de mão de obra, a disrupção das cadeias de abastecimento, mas os objetivos têm de ser atingidos porque, como diz Pedro Dominguinhos, "não é uma questão de pressa, mas de calendarização porque 2026 é para cumprir, e se possível, temos de acelerar essa execução".

Custos de contexto

Pedro Dominguinhos adianta que não se está a falar apenas de metas de investimento, "há marcos muito associados aos custos de contexto e a toda uma alteração legislativa que é essencial e que não nos podemos esquecer". "Está neste momento em discussão no Parlamento a alteração das ordens profissionais e do acesso à profissão. Este é um aspeto fundamental que foi negociado com Bruxelas e em que nós temos de cumprir quatro alterações nesta reorientação das ordens profissionais", frisou. Caso não se cumpra a próxima tranche pode ser condicionada por falta de mudanças nesta área.

No caso da mão de obra, implica que haja a capacidade das instituições de ensino superior, escolas profissionais, líderes de consórcio de criar uma estratégia de atração de recursos humanos a nível internacional para poder concretizar muitas destas iniciativas. É um desafio fundamental para conseguirmos executar os vários projetos que estão no terreno e irão a partir do segundo semestre ter um elã muito significativo. As agendas mobilizadoras implicam 3 mil milhões de incentivos com 7 mil milhões de investimentos e criarão uma dinâmica na relação das instituições de ensino superior com o mercado, sobretudo com uma orientação internacional.

A importância da colaboração na inovação

"A Mendes Gonçalves é empresa alimentar, produzimos molhos, condimentos e vinagres, exportamos para muitos países, com uma grande exposição ao canal horeca, por isso sentimos, de uma forma violenta, a crise pandémica de covid-19, que afetou as economias mundiais", afirmou Gonçalo Vale, diretor financeiro da empresa situada na Golegã.

Permite capturar valor, sinergias e escala que, como PME, não temos, e assim poderemos continuar a abordar os mercados globais e a criar produtos com maior valor acrescentado Gonçalo Vale
Administrador financeiro da Mendes Gonçalves

O PRR veio como resposta à crise e como forma de dinamizar a economia europeia. "A grande vantagem que vemos na forma como o PRR foi estruturado é a de ser mobilizado em torno da colaboração entre empresas e grupos económicos". Para Gonçalo Vale, "é relevante no caso da economia portuguesa em que há problemas de escala e dimensão. A própria Mendes Gonçalves é uma empresa pequena no nosso mercado, e compete com grandes grupos globais como a Kraft Heinz, e outros. Numa economia pequena e com operadores pequenos, a colaboração é muito interessante."

A Mendes Gonçalves está presente em três consórcios criados em torno das agendas mobilizadoras do PRR e em que se associa a grandes empresas, o que permite "capturar valor, sinergias e escala que como PME não temos, e assim poderemos continuar a abordar os mercados globais e a criar produtos com maior valor acrescentado através da inovação".

Acelerar a inovação

As agendas mobilizadoras foram um desafio para o tecido empresarial português que "não tem um ADN de grande colaboração alargada, mas a Mendes Gonçalves tem, há muitos anos, I&D e uma matriz colaborativa em que colabora com universidades, laboratórios Collab for food", disse Gonçalo Vale.

Considera que o tempo para responder às candidaturas foi muito apertado, mas é na opinião de Gonçalo Vale um modelo mais saudável e que permite a todos ganhar mais escala para acelerar a transição climática e digital. Deu o exemplo da Mendes Gonçalves que pretendia mudar o seu portefólio de embalagens. 

"Os molhos são estruturados em embalagens de plástico e nós já estávamos com um processo de investimento de mudança em três anos para embalagens totalmente recicladas", contou Gonçalo Vale. O PRR foi a oportunidade para entrar no consórcio Sustainable Plastics - Agenda Mobilizadora para os Plásticos Sustentáveis, liderado pela Logoplaste, para acelerar a transição.  "Nesse sentido é um instrumento muito relevante porque acelera e catapulta-nos para o que nós queríamos. A estratégia já lá estava, o PPR acelera a transição e dá-nos uma nova força para esta etapa".