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O futuro dos oceanos decide-se em Lisboa

Mais de 190 países e centenas de entidades de diversas áreas vão reunir-se na Conferência dos Oceanos da ONU, em Lisboa, com o objetivo de encontrar soluções para salvar os oceanos e a vida na Terra. A Declaração de Lisboa, que sairá da conferência, deverá estabelecer o ignorado nexo entre clima e oceanos e evidenciar o papel da economia azul. Espera-se ainda que a capital portuguesa venha a ser a “cidade casamenteira” entre as inúmeras entidades financeiras presentes e projetos inovadores de exploração marítima.

21 de Junho de 2022 às 14:00
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Proteger 30% dos oceanos até 2030, criar um tratado para proteger o alto-mar fora das jurisdições nacionais, discutir a anulação de subsídios à pesca lesiva para a biodiversidade, combater a poluição dos oceanos e desenvolver a economia do mar de forma sustentável, são alguns dos temas que estarão em discussão na Conferência dos Oceanos, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que terá lugar em Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho, sob o mote "Salvar o Oceano, Proteger o Futuro".

Mais de 190 países e centenas de entidades das áreas da economia, investigação, academia, tecnologia e sociedade civil estarão reunidas naquela que é a segunda conferência da ONU dedicada exclusivamente aos problemas dos oceanos.

"Queremos que esta conferência seja um ponto de viragem na nossa relação com os oceanos e na governação global deste sistema que é absolutamente fundamental para a estabilidade climática da Terra", disse António Costa Silva, ministro da Economia e do Mar, aquando da apresentação da conferência no final da semana passada.

Um dos resultados mais aguardados desta reunião global será a Declaração de Lisboa, que após mais de um ano de negociações deverá ser aprovada pelos Estados-membros.


A Conferência dos Oceanos, que será copresidida pelo Quénia, será composta por sessões plenárias, diálogos interativos temáticos, quatro eventos especiais e uma multiplicidade de eventos paralelos onde as diversas abordagens aos oceanos serão discutidas, decorrendo maioritariamente em Lisboa, mas com fóruns também em Matosinhos e Cascais.

Um dos resultados mais aguardados desta reunião global será a Declaração de Lisboa, que após mais de um ano de negociações deverá ser aprovada pelos Estados-membros, com vista a realçar áreas de atuação inovadoras e baseadas na ciência e na tecnologia que permitam apoiar a concretização do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14: conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos.

A Declaração de Lisboa contém muitos compromissos de todos os Estados-membros signatários, "mas não contém obrigações", destacou João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, na mesma apresentação. Porém, a Declaração de Lisboa "reflete a forma como hoje se pensa sobre os oceanos e que julgo ser uma evolução muito significativa em relação a épocas anteriores. Ela vincula todos os signatários - por isso mesmo foi objeto de negociação - a uma nova ação em relação aos oceanos", acrescentou Gomes Cravinho, que salienta o estabelecimento do nexo entre clima e oceanos e o desenvolvimento da economia azul como os dois pontos altos deste encontro em Lisboa.

Para além da declaração, também é esperado que os representantes dos governos, das empresas e da sociedade civil assumam voluntariamente compromissos concretos e realistas para abordar as várias questões relacionadas com os oceanos.

Economia azul como boia de salvação

A conferência, que tem como tema "Ampliar a ação oceânica com base na ciência e inovação para a implementação do Objetivo 14: balanço, parcerias e soluções", aposta na transformação da exploração marítima atual para uma economia azul sustentável como uma das abordagens para salvar e desenvolver o potencial dos oceanos.

Estima-se que o contributo do oceano para a economia global seja de 1,4 biliões de euros por ano, ou seja, aproximadamente 2,5% do valor acrescentado bruto (VAB) mundial, e espera-se que esse valor duplique até 2030, abrangendo uma vasta gama de setores produtivos: pesca e aquacultura, turismo, energia, navegação e atividades portuárias, e áreas inovadoras como as energias renováveis e a biotecnologia marinha.

O ministro da Economia e do Mar salienta que "na bioeconomia azul, o nosso país tem potencialidades enormes", destacando que "o oceano é uma fábrica escondida de energia", referindo como exemplo o potencial das ondas, das correntes e das amplitudes de maré, entre outras. "O potencial vai entre 20 mil e 80 mil terawatts-hora, sendo que 20 mil terawatts-hora é o consumo total da eletricidade hoje no nosso planeta", disse António Costa Silva, que acrescentou: "Temos também a eólica offshore e a capacidade de vir a produzir hidrogénio, que vai ser sem dúvida o combustível do século XXI, porque é versátil, compete na mobilidade e na armazenagem." O ministro destacou também o papel do país na produção de algas, sobretudo como forma de fazer face à crise alimentar do planeta.

A economia azul tem assim um elevado potencial de crescimento sustentável, de criação de postos de trabalho e de reforço da autonomia estratégica dos países. Para o efeito, são necessários investimentos significativos, em particular no desenvolvimento de novas tecnologias e na valorização do capital natural, pelo que o acesso às fontes de financiamento será um dos principais tópicos da conferência. "Não estamos perante falta de financiamento, pelo contrário, estamos perante um quadro em que há muito interesse por parte de entidades financeiras internacionais que procuram projetos interessantes", referiu João Gomes Cravinho. Por isso, acrescentou, "a nossa expetativa é também que Lisboa seja uma cidade casamenteira, de encontro de projetos interessantes e financiamento adequado".

Um fórum integrado na conferência que irá decorrer no Estoril, denominado Fórum sobre Economia Azul Sustentável e Investimento, será o palco onde as questões específicas sobre o financiamento da economia azul terão lugar.

Os oceanos absorvem cerca de 80% do impacto das alterações climáticas. Essa realidade apesar de ser bem conhecida dos cientistas tem sido pouco incorporada nos trabalhos sobre as alterações climáticas.


Para Tiago Pitta e Cunha, presidente executivo da Fundação Oceano Azul, só alterando a economia se poderá salvar os oceanos: "Nós não vamos conseguir salvar os oceanos apenas com filantropia e ações de conservação do oceano. A única maneira de salvar os oceanos é mudarmos a economia. Porquê? Pela simples razão de que foi o atual modelo de desenvolvimento económico que nos trouxe até aqui." Nesse sentido, é preciso passar de uma economia linear e extrativa para uma economia verde e circular, em que tudo é reaproveitado. "Aqui a economia vai ser muito importante porque os oceanos em termos de setores económicos podem ser uma cartada fundamental para contribuir principalmente para o grande desafio da descarbonização das nossas sociedades e das nossas economias", acrescenta, destacando a descarbonização dos transportes marítimos, a produção de energias renováveis offshore, a produção de algas e bivalves e a bioeconomia azul como áreas fundamentais da economia azul.

Oceanos, o sistema esquecido

Segundo o relatório Estado do Clima Mundial de 2021, da Organização Meteorológica Mundial, em 2021, os oceanos atingiram os níveis mais quentes e mais ácidos de que há registo. As emissões de carbono das atividades humanas estão a causar o aquecimento dos oceanos, a sua acidificação e a perda de oxigénio, o que, por sua vez, ameaça os organismos e os ecossistemas e impacta negativamente na segurança alimentar, no turismo e na economia. Mesmo assim, segundo Tiago Pitta e Cunha, "nos últimos 20 anos, foram poucas as iniciativas que a comunidade internacional, os Estados-membros das Nações Unidas, tomaram para resolver os problemas dos oceanos e, portanto, estes encontram-se ainda por resolver". Tem sido dado grande destaque à crise climática, nomeadamente na Europa com o Green Deal, porém desagregado dos oceanos, refere Pitta e Cunha ao Negócios: "Ainda não fizemos esse percurso. Eu diria mesmo que não há ainda medidas de governação do oceano internacionais que permitam tomar as medidas que são necessárias para termos ação oceânica como temos ação climática."

Para colmatar esta questão do afastamento dos oceanos das discussões e decisões globais, o estabelecimento do nexo entre clima e oceano será precisamente um dos pontos fundamentais a estabelecer nesta conferência, já que os oceanos estão na base da estabilização do clima. Os oceanos absorvem cerca de 80% do impacto das alterações climáticas. Essa realidade apesar de ser bem conhecida dos cientistas tem sido pouco incorporada nos trabalhos sobre as alterações climáticas. "Só nesta última conferência sobre alterações climáticas, em Glasgow, no ano passado, se colocou esta ligação aos oceanos. Por isso, queremos que desta conferência em Lisboa resulte um nexo muito mais profundo, uma interligação muito mais consolidada para incorporar mais e melhor os oceanos nas próximas conferências sobre o clima", destacou o ministro dos Negócios Estrangeiros. Uma vez que proteger os oceanos é fundamental para a sobrevivência das espécies, neste campo, Portugal é um dos países que já assumiu o compromisso de proteger 30% das suas áreas marinhas até 2030. Um desafio que se espera que seja amplificado nesta conferência.