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Na sombra da guerra

A iniciativa Prémio Nacional de Agricultura do BPI e da Cofina, com o apoio da PwC e do Ministério da Agricultura, comemorou 10 anos com o maior número de candidaturas de sempre, mais de 1.300.

22 de Março de 2022 às 14:00
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Na última década tem-se verificado uma evolução notável do setor agrícola. Este progresso reflete-se também na última edição do Prémio Nacional de Agricultura, que contou com 1.318 candidaturas, o maior número de sempre, com 44% a serem novas candidaturas e mais de 50% a serem dirigidas à agricultura sustentável, conforme referiu Pedro Barreto, administrador do BPI, na abertura da cerimónia de entrega de prémios, que teve lugar recentemente no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa.

A agricultura portuguesa tem mostrado uma resiliência notável durante a pandemia, com os números da produção e das exportações a superarem os de 2019. No entanto, o setor enfrenta um momento crítico com os efeitos da seca, da inflação e da guerra na Ucrânia - com a escalada dos preços dos fatores de produção como as matérias-primas, a energia ou os combustíveis - a acrescerem ao que era o legado da pandemia com a disrupção nas cadeias logísticas.

Agricultura "de luto"

Os efeitos desta extraordinária conjuntura dominaram o debate que teve lugar antes da atribuição dos prémios, com a participação de Eduardo Oliveira e Sousa, presidente da direção da Confederação dos Agricultores de Portugal; José Pedro Salema, presidente do conselho de administração da EDIA, e Arlindo Cunha, ex-ministro da Agricultura, com a moderação do jornalista da CMTV, João Ferreira.

O setor agrícola vai atravessar uma fase muito complicada com a escalada dos custos de produção. Os agricultores fazem contas e não avançam com as culturas porque percebem que vão ter um prejuízo que não podem suportar. Eduardo Oliveira e Sousa, presidente da direção da Confederação dos Agricultores de Portugal
"Estamos de luto." Foi assim que Eduardo Oliveira e Sousa caracterizou o momento que vive a agricultura portuguesa. Para o presidente da CAP, "o setor agrícola vai atravessar uma fase muito complicada com a escalada dos custos de produção". "Os agricultores fazem contas e não avançam com as culturas porque percebem que vão ter um prejuízo que não podem suportar. Para dar um exemplo: de um ano para o outro, o custo de produzir milho duplicou, mas o preço do milho não acompanhou esse crescimento."

Para Eduardo Oliveira e Sousa, a "salvação" de Portugal, um país com um enorme grau de dependência alimentar do exterior, está na União Europeia. Vai ser necessário alterar a política agrícola europeia. "Esse processo está em marcha em Bruxelas. Está em construção um plano de resiliência para a agricultura que garanta estabilidade no rendimento, limite o impacto da subida dos custos dos combustíveis e da energia, ponha em produção os terrenos que estavam em pousio e privilegie a segurança alimentar." Por outro lado, num momento em que existem tensões na União Europeia, com países a reforçar o armazenamento e a limitar as exportações, é necessária uma ação concertada, "como existiu para as vacinas, que garanta a solidariedade europeia e a segurança alimentar à escala do continente".

PAC nasceu para garantir a segurança alimentar da UE

Temos de garantir a sustentabilidade em todas as suas dimensões, contudo, a missão da agricultura não é salvar o planeta, mas sim produzir alimentos que garantam a sobrevivência das sociedades. Arlindo Cunha, Ex-ministro da Agricultura
A este propósito, Arlindo Cunha, ex-ministro da Agricultura, relembrou que a Política Agrícola Comum (PAC) foi das primeiras políticas comunitárias e nasceu para garantir a segurança alimentar de um continente devastado pela guerra. No entanto, nos últimos anos, a PAC tem sido dominada por questões climáticas e ambientais. "É verdade que temos de garantir a sustentabilidade em todas as suas dimensões, contudo, a missão da agricultura não é salvar o planeta, ela representa apenas 10% das emissões, mas sim produzir alimentos que garantam a sobrevivência das sociedades", referiu o ex-governante na sua intervenção. A crise na Ucrânia veio relembrar o que é fundamental na PAC. Arlindo Cunha deixou um alerta. "Mesmo que a guerra termine rapidamente, o seu impacto irá perdurar durante vários anos, porque quer a Ucrânia quer a Rússia são atores fundamentais nos mercados mundiais de produtos agrícolas."

Portugal não utiliza bem a água que tem

O problema de Portugal não é tanto o não ter água, é sobretudo o não utilizar bem a água que tem. (…) Temos de ganhar mais capacidade de armazenar e de gerir melhor a água. José Pedro Salema, presidente do conselho de administração da EDIA
Questionado sobre o impacto da seca na agricultura, José Pedro Salema, presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, reconheceu o problema, mas considerou que "o problema de Portugal não é tanto o não ter água, é sobretudo o não utilizar bem a água que tem. O país tem um problema de variabilidade intra-anual em que não temos água no verão, quando é muito necessária, e tem vindo a ter, cada vez mais, um problema de variabilidade interanual com anos secos. "Temos de ganhar mais capacidade de armazenar e de gerir melhor a água de uns anos para os outros." Para o presidente da CAP, a água é um fator limitante da agricultura no nosso território. "Em Portugal, a agricultura que se pode fazer sem água, a de sequeiro, é importante mas a disponibilidade de água é um fator muito importante na gestão e na atratibilidade do território para a agricultura e para fixar populações, nomeadamente jovens", referiu.

Os problemas estruturais da agricultura em Portugal

A questão da utilização da água é apenas uma das questões estruturais da agricultura portuguesa, segundo o diagnóstico feito por Arlindo Cunha na sua intervenção. Questionado sobre a evolução do setor nos 30 anos que passaram desde que teve responsabilidades no ramo, o ex-ministro de Cavaco Silva nos anos 90 salientou as melhorias, mas apontou igualmente o muito que não mudou e o que piorou. Na sua avaliação, "Portugal evoluiu enormemente na sanidade animal e vegetal, com a erradicação de doenças e o controlo de pragas, em simultâneo com consideráveis melhorias na qualidade dos alimentos e nas práticas ambientais".

Uma área em que não existiu tanto progresso quanto seria necessário para acrescentar valor às produções foi na organização económica da agricultura. A cobertura por organizações de produtores é insatisfatória e desequilibrada, quer por produtos, quer por regiões, embora existam fileiras agroalimentares bem organizadas, como são os casos do leite, dos cereais, de alguns frutos e de algumas regiões do vinho. Para Arlindo Cunha, esta questão relaciona-se com a continuada fraqueza do produtor na cadeia de valor. "O agricultor está ensanduichado entre oligopólios. De um lado, temos os fornecedores dos fatores de produção, que são poucos e com preços tendencialmente muito altos. Do outro, os compradores, em que os poucos ‘players’ da grande distribuição e da agroindústria compram 75% da produção. O resultado final são preços em que o produtor fica só com 20%-25% do custo para o consumidor."

Na última década, tem havido uma evolução notável do setor agrícola, que se refletiu no maior número de candidaturas de sempre ao Prémio Nacional de Agricultura, com 44% a serem novas candidaturas. Pedro Barreto, Administrador do BPI
No entanto, a agricultura portuguesa tem melhorado a sua capacidade exportadora, sobretudo na fruta e no leite. Segundo o ex-ministro, "Portugal tem atualmente uma melhor taxa de cobertura entre exportações e importações do setor agrícola, mas continua com um deficit muito importante e que tem vindo a piorar nos últimos três anos". Referiu igualmente que, apesar do Alqueva e de outros empreendimentos modernos, "a área de regadio em Portugal tem vindo a reduzir-se em resultado do abandono da média e pequena exploração agrícola". Este fenómeno não pode ser dissociado daquele que o responsável vê como o maior problema do setor: o envelhecimento da população ativa, apesar de todos os programas governamentais. Em 2000, os agricultores com menos de 40 anos eram 9,4%, atualmente são 3,9%.

Revolução tecnológica em curso

O debate terminou apontado ao futuro, com os intervenientes a salientar a revolução tecnológica em curso na agricultura e a necessidade de fortalecer e fazer crescer as redes de inovação envolvendo o Estado, a indústria, os produtores, e as universidades e politécnicos. Foi salientada a necessidade de disponibilizar a cobertura de comunicações (nomeadamente o 5G) em todo o território como condição da digitalização da atividade e da fixação dos jovens. Uma nota final para as declarações de Arlindo Cunha: "Nos últimos 20 anos, temos tido uma taxa média anual de aumento da produção de 2%-3%, mas o valor acrescentado (subtraindo os fatores de produção e as amortizações) tem crescido a 0,3% ao ano, abaixo do mesmo indicador para toda a economia. Temos de criar condições para uma agricultura mais produtiva, mais competitiva e mais eficiente."