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Quais seriam os principais ganhos para o sistema com a autonomia da gestão hospitalar? Como é que se poderia obviar os riscos de derrapagens orçamentais?
Uma administração menos dependente de processos administrativos é benéfica, numa perspectiva de privilegiar a autonomia e a responsabilização dos gestores hospitalares pelos resultados obtidos. Mas os resultados/objectivos para essa avaliação têm de ser pensados com uma visão qualitativa e não quantitativa. Não adianta nada definir o sucesso pelo volume de actos médicos. Sucesso numa instituição de saúde terá que ser definido pela qualidade desses actos, uma qualidade que significa, por exemplo, menos reinternamentos.
Qualidade e eficiência podem e devem andar de mãos dadas, pois a única forma de obter eficiência sustentada é mesmo através da qualidade. As derrapagens orçamentais seriam evitáveis com orçamentos adequados e realistas. É importante a transparência de resultados, claro, e equipas multiprofissionais e multidisciplinares qualificadas. Mas, essencialmente, é obrigatório não sub-orçamentar os hospitais.
Quais são as condições ideais para que um hospital público tenha muito menos desperdícios e um ambiente de melhoria contínua?
Falta uma verdadeira reforma hospitalar, nomeadamente no sector mais crítico do Serviço Nacional de Saúde: os serviços de urgência. É preciso repensar o sistema, com hospitais de futuro e não de passado. A forma como os hospitais portugueses estão organizados tem 30 ou 40 anos. Há sempre tendência em falar do desperdício, mas Portugal tinha, com menor despesa do que muitos outros países, um SNS dos mais eficientes da Europa. Infelizmente, neste momento, a falta de investimento e os cortes cegos, que ultrapassaram até as exigências da própria troika, geraram uma situação de grande degradação do serviço público de saúde.
Não há melhoria contínua sem investimento. Se ainda estamos a dar resposta às necessidades básicas da população é porque temos os melhores profissionais, especialistas que com pouco fazem muito e fazem-no bem feito.
Bastonário da Ordem dos Médicos
Para um ambiente de melhoria contínua é preciso hospitais com maior flexibilidade, mais espaço de internamento fora dos hospitais, mais unidades de cuidados continuados. É preciso mais tempo para investigação e aplicar essa investigação à melhoria de processos. E não bastará melhorar os serviços em termos de equipamentos ou instalações: também temos que promover a educação para a saúde.
Para uma organização de saúde quais são os principais desafios na implementação dos modelos baseados nos resultados em saúde?
Não valerá a pena falarmos de um modelo baseado em resultados se estes forem impossíveis de alcançar ou forem exclusivamente quantitativos criando uma pressão (ainda) maior aos médicos e aos restantes profissionais de saúde. Se as métricas são importantes, a qualidade é fundamental. É cada vez mais necessário utilizar métricas qualitativas, que façam uma medição clara da qualidade dos actos médicos, da qualidade das intervenções cirúrgicas e não apenas do número de procedimentos que executam.
Quais são as principais diferenças na gestão hospitalar no Serviço Nacional de Saúde e no sistema privado?
Neste momento existe um desfasamento entre a realidade e os orçamentos que os hospitais do SNS têm que gerir. Essa é a grande diferença entre os hospitais do SNS e do sistema privado: apesar de apenas existir uma medicina, existem vários modelos de financiamento muito diferentes nos quais o sector privado tem muito mais recursos e muito menos burocracia para gerir esses mesmos recursos.
O sector público está cada vez mais condicionado pela falta de investimento e não tem autonomia, nem flexibilidade de gestão.
O SNS está no limite e precisa de modelos de gestão que lhe permitam maior capacidade de resposta quer para contratação quer para a prestação de cuidados de qualidade. É necessário haver coragem para que os directores clínicos dos hospitais e centros de saúde passem a ser eleitos pelos pares. Não podemos ter liberdade dentro do SNS sem duas condições fundamentais: financiamento alocado ao hospital onde determinado doente escolhe ser tratado e dotar as unidades de saúde de capacidade de resposta.
"A limitação da autonomia e a restrição da tesouraria levam à paralisia e ao desperdício"
Sem autonomia não se consegue gerir organizações complexas como os hospitais, sobretudo quando tem de servir mais pessoas, investir em tecnologias e em inovação terapêutica e incluir experiência do doente no próprio modelo de financiamento da saúde.
"Os hospitais são organizações extraordinariamente complexas pela utilização intensiva de recursos humanos, capital, tecnologia e conhecimento. Peter Drucker afirma mesmo que representam a forma mais complexa de organização humana que alguma vez se pretendeu gerir", refere Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. Como diz Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, hoje exige-se que um gestor hospitalar encontre "um equilíbrio na gestão entre o que é burocrático e o que é técnico, ao mesmo tempo que cumpre os objectivos empresariais e económicos da instituição que gere".
Qualidade e eficiência podem e devem andar de mãos dadas, pois a única forma de obter eficiência sustentada é mesmo através da qualidade. As derrapagens orçamentais seriam evitáveis com orçamentos adequados e realistas. É importante a transparência de resultados, claro, e equipas multiprofissionais e multidisciplinares qualificadas. Mas, essencialmente, é obrigatório não sub-orçamentar os hospitais.
Esta complexidade e a perda de autonomia da gestão em nome do controlo da despesa constituem hoje as questões que mais afectam a gestão hospitalar. Para Alexandre Lourenço, a falta de autonomia em organizações extremamente complexas tem consequências. Miguel Guimarães considera que o principal inimigo de quem faz a gestão é, o subfinanciamento crónico do SNS para enfrentar os "avanços tecnológicos (que acarretam custos elevados na aquisição de equipamentos actualizados, mas cuja aquisição é essencial para a boa prestação de cuidados) e inovação terapêutica, com orçamentos que nem sempre são adequados".
Retrato negativo
"A limitação da autonomia e a restrição da tesouraria têm conduzido o hospital público à paralisia e ao desperdício", refere Alexandre Lourenço, administrador no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Acrescenta que "apesar de estarmos a aumentar a actividade do hospital público, a nossa capacidade para atender às necessidades individuais é cada vez menor. Quem frequenta o hospital público conhece as condições de trabalho e as dificuldades dos doentes e das famílias que o procuram".
200%
Resultados
Os resultados operacionais negativos dos hospitais agravaram-se em quase 200%.
Os números confirmam o retrato. De acordo com uma avaliação do Jornal de Negócios aos dados divulgados pelo Ministério da Saúde, os principais indicadores económicos de 43 das 45 unidades hospitalares com dados comparáveis entre 2014 e 2017 permite concluir que globalmente, os resultados operacionais negativos agravaram-se em quase 200%, para cerca de 460 milhões de euros, e os prejuízos quintuplicaram para cerca 440 milhões. Quanto ao EBITDA (resultados antes de impostos, amortizações, depreciações e juros), passou de 29,5 milhões de euros positivos para 296,9 milhões negativos.
Novo modelo
Sublinha Miguel Guimarães que um dos principais desafios na gestão hospitalar é o desenvolvimento de um modelo de financiamento partilhado entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde secundários de base populacional, bem como a inclusão da experiência do utente, do doente, no próprio modelo de financiamento da saúde.
Para Alexandre Lourenço, os modelos baseados em resultados em saúde são bastante exigentes para as organizações, nomeadamente na padronização dos percursos clínicos dos doentes e nos sistemas de informação. "Nesta área a colaboração entre administradores, profissionais de saúde e doentes é essencial. Por outro lado, os resultados em saúde necessitam ser analisados conjuntamente com os custos gerados. Nesta vertente os modelos de custeio baseados em actividade devem ser desenvolvidos", acentua o gestor hospitalar.
"A boa gestão e os bons resultados conseguem-se com rigor, profissionalização, qualificação e responsabilização dos gestores. Os conselhos de administração devem ser responsabilizados pelo seu orçamento e actividades. Se o seu desempenho for inadequado devem ser substituídos", sublinha Alexandre Lourenço.