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Céu Mateus: "É preciso decidir que ganhos em saúde devem ser pagos por todos"

A rigorosa avaliação económica em saúde é crucial para perceber a relevância das inovações, dispositivos médicos ou formas de prestação de cuidados. Céu Mateus considera que "a prática de uma medicina baseada na evidência ainda tem um longo caminho a percorrer".

06 de Dezembro de 2018 às 15:00
Céu Mateus, professora associada da universidade de Lancaster
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Céu Mateus é professora associada da Universidade de Lancaster. Licenciou-se em Economia no ISEG e doutorou-se em Economia da Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, onde leccionou entre 2001 e 2014. A sua investigação tem como principais temas a avaliação económica das tecnologias de saúde, medição de eficiência, equidade e qualidade de vida.

Para uma organização de saúde quais são os principais desafios na implementação dos modelos baseados nos resultados/ganhos em saúde, em métricas mais qualitativas?
O principal desafio estará relacionado com a subjectividade da avaliação e com a existência de diferentes instrumentos para diferentes doenças com diferentes escalas. A medição da qualidade de vida relacionada com a saúde, ou a medição de ganhos em saúde, é feita com base em instrumentos devidamente validados que apresentam resultados quantificados e que existem há dezenas de anos sem terem suscitado interesse de maior por parte dos profissionais ou das organizações de saúde. Deve ser tida em consideração a gestão dos dados recolhidos e qual o seu propósito.

Esta mudança é estimulada pela tecnologia ou implica uma nova forma de organização em que os cidadãos/doentes participam nas tomadas de decisão?
Uma consulta hoje continua a ser muito parecida com uma consulta há 500 anos: temos um médico e temos um doente. As pessoas levam mais tempo a mudar do que a tecnologia. A tecnologia muda-nos o mundo todos os dias. Basta pensar no que nos fez a internet nos últimos 20 anos. É natural que os processos organizacionais procurem retirar benefício das tecnologias e equipamentos que vão estando ao nosso dispor.

É fundamental decidir quais os ganhos em saúde que consideramos efectivamente importantes.


Os cidadãos e os doentes vão estando mais envolvidos na tomada de decisão, mas tem de ser produzida informação que possam compreender e utilizar. Tem de se eliminar a assimetria de informação que existe entre os profissionais de saúde e os cidadãos/doentes, caso contrário não pode haver um verdadeiro envolvimento por parte destes últimos em processos que são do seu interesse e que dizem respeito à sua vida e à sua morte.

Como é que as organizações se podem estruturar para fazer face à inovação, cada vez mais onerosa, e seleccionar as que contribuem para uma maior qualidade de vida dos doentes?
É importante não esquecer que para os ganhos em saúde também contribuem as condições de habitação, a alimentação, o rendimento, etc. A prevenção e o rastreio são muito importantes para ganhos significativos em saúde, mas tendem a ser relegados para segundo plano em termos de recursos atribuídos. Os sistemas e as organizações de saúde não existem fora das sociedades onde estão, diferentes países utilizam diferentes mecanismos para decidir sobre as inovações a adoptar.

É fundamental decidir quais são os ganhos em saúde que consideramos efectivamente importantes e, por isso, devem ser pagos por todos. A avaliação económica em saúde feita de forma rigorosa é crucial para que se consiga perceber quais as inovações que são relevantes, bem como os dispositivos médicos ou formas de prestação de cuidados. Mas também temos de estar preparados para aceitar que nem toda a inovação é geradora de ganhos em saúde, por isso, não deve ser adoptada. Além do mais, nem sempre a inovação em saúde estará alinhada com os interesses dos doentes, há áreas em que não aparecem inovações há muitos anos, por exemplo.

Por outro lado, também poderemos questionar se é aceitável que os preços dos novos medicamentos e dispositivos médicos tenham de ser sempre superiores aos preços dos produtos que vêm substituir. Se acharmos que sim, então temos de aceitar que o aumento da despesa em saúde tem de ser feito à custa de cortes no orçamento em outros sectores ou à custa do aumento de impostos, isto num sistema como o português. Poderemos ainda optar por um modelo mais americanizado em que o acesso aos cuidados de saúde e à inovação fica dependente da capacidade individual de pagar por esse acesso.

Qual pode ser o papel da tecnologia, como a gestão de dados, para um novo modelo de saúde baseado em resultados e ganhos para a saúde?
Um novo modelo de saúde vai depender do que as pessoas que trabalham no sector da saúde efectivamente quiserem fazer com a tecnologia e os dados que têm ao seu dispor. Não nos podemos esquecer de que toda a gestão de dados comporta custos. A tecnologia, tal como até agora, é uma ferramenta de apoio à decisão e ao controlo de qualidade dos processos.

A avaliação económica em saúde já produz muita informação sobre optimização de recursos em saúde, ou seja, permite-nos saber os ganhos que são trazidos por tratamentos inovadores e com que custos, por exemplo. Ou tratamentos que não trazem ganhos em saúde e que deviam deixar de ser feitos.

Contudo, a prática de uma medicina baseada na evidência ainda tem um longo caminho a percorrer. E também não nos devemos esquecer de que menos pode ser mais como o programa Choosing Wisely Portugal - Escolhas Criteriosas em Saúde mostra ao tentar modificar o comportamento dos prestadores e dos doentes.