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As pessoas no centro do sistema de saúde

A literacia em saúde estimula os autocuidados e a uma maior participação no sistema e nas decisões. Mas há quem defenda que falta a participação cidadã na tomada de decisão em saúde.

03 de Novembro de 2016 às 11:16
Sara Matos
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Os sistemas de saúde atravessam uma mudança de paradigma em que passam a estar centrados na saúde e não na doença, em que a importância está mais nos ganhos de saúde do que produção de cuidados de saúde e de níveis de actividade. E isto passa pelos autocuidados do cidadão e pela sua literacia e participação. Constantino Sakellarides, professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública, diz quenão haverá SNS dentro de dez anos se o não centrarem nas pessoas.

O investigador sublinha a importância da literacia em saúde, que define como a capacidade de tomar decisões inteligentemente, na vida de todos-os-dias. A literacia em saúde tem de ser "um desígnio do conjunto da sociedade portuguesa" diz Constantino Sakellarides, porque são vários os obstáculos como uma literacia geral insuficiente (principalmente em termos funcionais), baixos níveis de desenvolvimento sócio- económico e acentuadas desigualdades sociais.

"Não basta investir numa maior "inteligência em saúde" do cidadão comum" constata Constantino Sakellarides, que defende que se passe para a inteligência colaborativa ou multiliteracia e se englobem actores sociais públicos e privados, profissionais, administrativos, económico-financeiros e políticos, para colaborar para uma melhor saúde pública em Portugal. Considera que o Portal do SNS pode ser decisivo e que se deve articular com uma rede de "mediadores" capazes de fazer chegar esta agenda aos muitos portugueses que não utilizam regularmente portais da saúde.

Há vários exemplos de acções de literacia para a saúde como o Programa de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados, de que faz parte o Repositório de Literacia em Saúde, ainda em fase experimental. Outros em que a participação pública se associa à literacia em saúde e à prevenção como no projecto de partilha pública e reunião dos parceiros no âmbito do SINATS (Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde). Ana Escoval sublinha que as associações de doentes podem ter um papel fundamental enquanto mediadores e as associações de defesa do consumidor no apoio às escolhas.

Falta participação na decisão

"No que diz respeito à participação pública, se a mesma é tanto melhor quanto maior a literacia, trata-se também de uma realidade que vai muito além da intervenção no espaço público, por iniciativa dos próprios cidadãos ou das associações" dizem Margarida Santos e Sofia Crisóstomo, coordenadoras "Mais Participação, melhor saúde", um projecto promovido pelo GAT - Grupo de Activistas em Tratamentos, com 13 organizações de pessoas com doença, utentes do SNS e de consumidores, e a colaboração científica do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Acrescentam que "é um processo que pressupõe que, quem detém o controlo e o poder de decisão, abdique de ter a exclusividade na tomada de decisão".

Como exemplos de facilitação da participação e de cidadania, Ana Escoval, presidente do Centro Hospital Lisboa Norte invoca a reforma de 2005 no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários para referir a criação dos conselhos da comunidade e dos gabinetes do cidadão. O que permitiu criar Ligas e Grupos de Amigos, que informam, promovem e estimulam o interesse e a participação das pessoas na vida da sua unidade e equipa de saúde. Os centros de saúde produzem e divulgam conteúdos nas unidades, internet, distribuição de folhetos e cartazes, desenvolvem projectos com as comunidades, escolas, centros de dia, farmácias. "O objectivo major destes projectos é informar, aumentar o conhecimento, facilitar o acesso a informação credível, que ajude as pessoas a tomar decisões e a co-responsabilizarem-se pela sua saúde e pela dos pares, da sociedade, da comunidade onde estão inseridas" resume Ana Escoval.

Existem vários exemplos de iniciativas da sociedade civil na área da saúde em Portugal, nomeadamente, campanhas de prevenção e de diagnóstico precoce do cancro, campanhas de sensibilização para a diabetes e iniciativas de prevenção do VIH/Sida, entre outras. Mas para Margarida Santos e Sofia Crisóstomo, falta "a participação cidadã na tomada de decisão em saúde" pois carece de mecanismos e, por isso, "dificilmente podemos seleccionar uma boa prática de participação pública em saúde em Portugal, atendendo a esta concepção da mesma: a participação dos cidadãos e das organizações que os representam, como parceiros, em todas as fases da tomada de decisão".

Cidadãos informados são mais exigentes Cidadãos mais informados utilizam melhor os recursos disponíveis, são mais capazes de gerir a sua saúde e doença. "São também pessoas mais exigentes, que questionam as coisas e as orientações", por isso, "é importante que as estruturas e os profissionais também estejam preparados para dar resposta a estes novos desafios" alerta Ana Escoval, presidente do Centro Hospitalar Lisboa Central.

A gestora não concorda com a ideia de que participação dos cidadãos na saúde pode induzir maior despesa. Tem a ideia contrária. Um "cidadão melhor informado, mais participativo, gere melhor os recursos que tem à sua disposição" diz Ana Escoval. E exemplifica: "Uma pessoa devidamente informada sobre os malefícios das radiações para a saúde e que se preocupe com a prevenção do cancro e de outras doenças, vai querer duplicar um exame de Raio X? Alguém que tenha a noção da probabilidade de contágio do vírus da gripe numa urgência de um hospital irá optar por contactar a saúde 24 em casos não urgentes".

Margarida Santos e Sofia Crisóstomo, coordenadoras do projecto Mais Participação, Melhor Saúde são taxativas em dizer que "os cidadãos e as organizações de cidadãos são os primeiros interessados na sustentabilidade do SNS". Referem que "o sobre-diagnóstico e o sobre-tratamento, assim com o seu oposto, como se sabe, são uma realidade, fazem parte do exercício humano da Medicina por parte dos profissionais de saúde. A participação dos cidadãos, ao contribuir para informar a decisão, pode, eventualmente, contribuir para a diminuição dessa realidade". Mas não escondem que em determinadas situações há aumento de despesa, "sobretudo quando as dinâmicas de integração dos cidadãos nas tomadas de decisão em saúde estiverem a ser implementadas".

Constantino Skallarides refere que os riscos de sobre-diagnóstico e de sobre-tratamento são sobretudo associados a movimentos cidadãos de uma temática (doença) específica, "de cuja acção efectiva poderia resultar um canalizar pouco razoável dos recursos colectivos em seu benefício, em detrimento de outros". Considera que esse risco pode ser minimizado por "uma acção governativa esclarecida e transparente" e que o activismo dos cidadãos na protecção e promoção da sua saúde "devem ser animados e não desencorajados a fazê-lo". 


A literacia não é como um xarope "Podemos promover o desenvolvimento do nível de literacia em Saúde da pessoa, através de melhores estratégias de comunicação, melhores recursos formativos e comunicacionais, melhores materiais, mas não podemos "dar" literacia a ninguém, como damos um comprimido ou xarope, pois este é um processo interno e individual de aquisição de competências" refere Ana Escoval".

É um processo que deve estar presente em todas as fases do ciclo de vida e iniciar-se logo na infância, nas escolas. Como diz Ana Escoval, "a literatura demonstra que uma pessoa com capacidade para tomar correctamente a medicação para uma doença crónica, como a diabetes ou a doença cardíaca, vai diminuir as agudizações, os internamentos, as complicações (amputações, retinopatias, enfartes, doença renal, etc.)".

"Há um exercício de literacia para a cidadania que é urgente fazer-se junto de quem tem o poder de tomar decisões em saúde em Portugal (políticos, gestores, profissionais de saúde, etc.)" referem Margarida Santos e Sofia Crisóstomo, para quem é generalizada a falta de preparação para envolver e colaborar com os cidadãos e com as suas organizações no âmbito da saúde, como de outros em geral".