Notícia
Duarte Brito
Do ponto de vista da análise da eficiência dos mercados, o que torna o sector da distribuição especialmente interessante é o duplo papel que as empresas de distribuição desempenham.
Do ponto de vista da análise da eficiência dos mercados, o que torna o sector da distribuição especialmente interessante é o duplo papel que as empresas de distribuição desempenham. Estas são, simultaneamente, compradoras e vendedoras e, no caso da grande distribuição, com algum poder de mercado quer na sua relação com o consumidor final quer na sua relação com os produtores que a abastecem. Revela-se por isso pertinente conhecer como a teoria económica aborda estas situações.
Teoria
O poder de mercado junto do consumidor final tem, como é sabido, consequências negativas sobre o bem-estar: a prática de preços superiores aos custos marginais leva a uma contracção da quantidade transaccionada a que está associada uma destruição de valor. Significa isto que o acréscimo no lucro da empresa decorrente de uma subida do preço é inferior à perda sofrida pelos consumidores, que não só adquirem uma quantidade inferior como pagam mais por cada unidade. Desta forma, o conjunto dos agentes económicos vê o seu bem-estar diminuir.
Um efeito semelhante, mas possivelmente menos conhecido, ocorre no caso da existência de um comprador com poder de mercado em relação aos seus fornecedores. Considere-se o caso de um monopsónio, situação extrema em que existe apenas um único comprador no mercado, que actua num mercado em que a oferta é perfeitamente concorrencial e positivamente inclinada (i.e. os produtores, em número considerável, só estão dispostos a vender cada unidade adicional se o preço de mercado for mais elevado). Neste caso, o comprador único tem consciência que as alterações na quantidade procurada terão efeitos sobre o preço: nomeadamente, se reduzir a quantidade procurada beneficiará de um preço unitário menor. Este facto conduz a efeitos análogos aos do caso anterior: a quantidade transaccionada óptima na perspectiva do único comprador será inferior à que resultaria de uma situação perfeitamente concorrencial, o que acarreta uma redução no bem-estar. Os princípios que decorrem deste caso limite são aplicáveis a situações menos extremas, como a existência de um grupo de empresas price makers ou seja, conscientes da sua capacidade de afectar os preços de mercado a montante.
Numa situação em que uma empresa é simultaneamente o único comprador e vendedor de determinado produto e, como tal, goza de poder de mercado em ambas as situações, os dois efeitos reforçam-se: ao reduzir a quantidade não só o custo unitário de fornecimento é menor, como o preço de venda unitário aumenta. Tal situação tornaria o mercado ainda menos eficiente ao reduzir ainda mais as transacções. O poder de mercado de um comprador não é pois algo que se revele desejável em todas as circunstâncias e muito menos quando se alia à existência de poder de mercado do mesmo agente na revenda do mesmo produto.
Se por um lado é possível que as grandes empresas do ramo da distribuição gozem de poder de mercado, quer na sua relação com o consumidor final quer na sua relação com os produtores, é pouco provável que se abasteçam junto de um conjunto de produtores perfeitamente concorrenciais, sendo natural que os próprios produtores também tenham alguma capacidade para alterar os preços. Nesta situação de poder de mercado bilateral, ambas as partes poderão chegar a um acordo sobre qual a quantidade óptima na sua perspectiva conjunta (maximizando os ganhos de ambos), negociando em seguida relativamente a qual o preço a pagar, ou quais outras condições contratuais a incluir.
Ao internalizarem os ganhos para ambas as partes no processo de determinação da quantidade, esta será superior à do caso em que ambas as empresas não possuem qualquer poder de mercado, mas não é necessariamente a mais eficiente. Neste sentido, pode dizer-se que a existência de um contra-poder por uma das partes (sejam eles os produtores ou os distribuidores) conduz a uma maior eficiência do mercado, beneficiando o consumidor através de preços mais reduzidos. Resta saber quais as consequências a longo prazo das diferenças entre os poderes negociais de ambas as partes. Se estas diferenças resultarem numa distribuição assimétrica dos ganhos, que seja desfavorável aos produtores, pode colocar-se a hipótese de estes não estarem dispostos a investir em qualidade e no desenvolvimento de novos produtos ou processos produtivos. Para quê fazê-lo se tais acções se limitarem a fazer crescer os lucros do sector da distribuição? Adicionalmente, se os produtores de menores dimensões se virem forçados a abandonar o mercado pode também haver uma redução na variedade de produtos, limitando o conjunto de escolhas disponíveis para o consumidor.
A distribuição alimentar em Portugal não se caracteriza por existir apenas um único grupo que se abastece junto de produtores perfeitamente concorrenciais. O relatório «Buyer power and its impact on competition in the food retail distribution sector of the European Union” elaborado pela Dobson Consulting em 1999, classificava o retalho alimentar nacional como equivalente a um triopólio e a maior parte dos sectores produtivos também são caracterizados por um número reduzido de «jogadores”. No entanto, o aumento gradual da concentração no sector não pode deixar de suscitar preocupações.
Prática: os retalhistas enquanto compradores
No artigo «Buying Power of Multiproduct Retailers” (1998), a OCDE definiu que um comprador teria poder de mercado se tivesse a possibilidade de ameaçar um produtor com um custo de oportunidade muito superior (em termos relativos) aos custos para si próprio no caso de se concretizar a ameaça. Em Portugal, como na maior parte dos países europeus, o custo que uma grande cadeia retalhista pode impor a um produtor ao retirar de linha o(s) seu(s) produto(s) é claramente superior ao custo em que a própria cadeia incorre. Devido ao elevado número de produtos que uma cadeia de distribuição vende, a retirada de linha de determinada marca tem um impacto relativamente menor nos lucros do distribuidor do que nos do produtor. Adicionalmente, na eventualidade de determinado produto ser retirado de linha por uma cadeia de retalho é mais provável que um consumidor substitua esse produto por outro, do que altere a cadeia da sua preferência. Isto significa que a ameaça de não fornecimento por parte do produtor terá consequências menos graves para a distribuição do que para o próprio produtor, o que confere ao distribuidor (ou comprador) algum poder na relação entre ambos. Essas consequências serão ainda menores para o distribuidor se os consumidores substituírem o produto em causa por um com a marca do distribuidor.
O nível de agregação dos dados da contabilidade das empresas produtoras não permite que se conheça o peso dos grupos da distribuição nas vendas de cada uma. No entanto, um inquérito conduzido pela Centromarca em 2001 e cujos resultados são disponibilizados no seu site, permite obter alguma informação. Para uma amostra de 49 grandes empresas, com um volume de vendas conjunto superior a 4 mil milhões de Euros, o canal retalhista apresenta-se como o destino de mais de 45% das vendas, tendo subido 10 pontos percentuais nos sete anos anteriores à data do inquérito. Os grossistas e centrais de compras, em muitos casos integrados em grupos que incluem também insígnias de retalho, representavam ainda cerca de 25% das suas vendas. Detalhando por sectores, o canal retalhista tinha um peso ainda superior para os produtos de drogaria, higiene pessoal, bazar, produtos lácteos e de mercearia. Em média, o principal cliente das empresas da amostra representa mais de 17% das suas vendas e o segundo maior cliente quase 15%. Estas percentagens são ainda superiores nos sectores acima referidos. Se o exercício inverso fosse feito, verificar-se-ia que o peso de cada uma destas empresas nas vendas de uma cadeia de retalho seria muito inferior. A título de exemplo, refira-se que o volume de vendas médio das empresas na amostra representa menos de 4% das vendas brutas do maior grupo retalhista nacional.
Uma questão interessante será saber quais os limites a partir dos quais se pode falar de poder de mercado por parte do comprador. No Reino Unido, a Competition Commission defendeu que um retalhista com um peso de 8% na aquisição de produtos alimentares para revenda nas suas lojas, poderia exercer um significativo poder de mercado na sua relação com os fornecedores. Já no caso alemão, o Bundeskartellamt considerou, no caso Metro/Allkauf, que um produtor poderia estar sujeito à mesma pressão por parte de um retalhista com uma quota de mercado de 7,5%. Por sua vez, a Comissão Europeia, no caso n° IV/M.1684 - Carrefour / Promodés, estabeleceu que um cliente que representasse 22% das vendas de um fornecedor só com grandes custos poderia ser substituído, o que tornaria o produtor dependente deste.
Dada a concentração actual da distribuição moderna, estes valores serão excedidos em muitos casos resultando em preços de aquisição mais reduzidos, bem como na possibilidade de imposição, junto dos produtores, das mais variadas condições. Entre as práticas mais referidas na literatura, encontra-se a obrigatoriedade de retoma de produtos não vendidos, os pagamentos excessivos para «listagem” dos produtos, ou para obter posicionamento favorável no linear, avultadas contribuições para despesas promocionais e para investimentos nas lojas, descontos retroactivos, atraso no pagamento em relação aos prazos acordados (a este respeito refira-se que a mediana do prazo médio de pagamento a fornecedores, disponibilizado pelo Banco de Portugal no seu Quadro de Situações Sectoriais (2003), para o sector de Comércio a Retalho em Supermercados e Hipermercados é 50% superior ao mesmo valor para o Comércio a Retalho em geral), alteração unilateral das condições contratuais, exigência de exclusividade na distribuição do produto, ou até a exigência de incorporação de serviços de determinadas terceiras empresas no produto em causa.
Ao nível dos preços de compra, parece haver evidência para o caso português de que os retalhistas que representam um peso maior nas vendas de um produtor obtêm preços significativamente inferiores. Utilizando uma amostra de 13 retalhistas e 14 produtores com um total de 182 observações de relações contratuais entre ambos, mostra-se que para a maioria das empresas existe, de facto, uma relação positiva entre a importância do retalhista nas vendas do produtor e os descontos médios obtidos em relação ao preço tabelado (para mais detalhes, ver Pedro P. Barros, Duarte Brito e Diogo de Lucena, "Mergers in the food retailing sector: an empirical investigation", 2005, European Economic Review, a publicar). Neste caso, o consumidor e a economia em geral terá benefícios no curto prazo, pois um distribuidor com custos marginais mais baixos terá incentivos em também praticar preços inferiores. Note-se, no entanto, que esta situação pode dar origem a um ciclo vicioso (ou virtuoso, dependendo da perspectiva) em que os maiores distribuidores obtém o produto com melhores condições, transferem parte dessas reduções nos custos para os consumidores, sob a forma de menores preços o que, por sua vez, aumenta a quota do distribuidor, permitindo-lhe exigir preços ainda mais baixos ao produtor e assim sucessivamente.
Relativamente às outras práticas mencionadas, algumas são lesivas da concorrência e outras, como exigir contribuições para a modernização ou abertura de lojas, são meras transferências de lucros dos produtores para os distribuidores que, no curto prazo, não têm grande impacto sobre o bem-estar agregado. Entre as práticas lesivas da concorrência contam-se, como é óbvio, a imposição de distribuição exclusiva que impeça outros distribuidores de ter acesso à constituição de um sortido de produtos comparável, ou a impossibilidade de um produtor vender o produto com descontos superiores a um distribuidor concorrente, impedindo este de o colocar no mercado final a preços mais competitivos. Também a exigência de o produtor utilizar certos serviços de terceiros distorce a concorrência a este nível, impedindo-o de procurar o fornecedor mais eficiente. Em Portugal, é proibida, se susceptível de afectar o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva do estado de dependência económica em que uma empresa, fornecedora ou cliente, se encontre, por não dispor de alternativa equivalente (para uma lista das práticas consideradas abusivas, ver Artº 4, Lei 18/2003).
Prática: os retalhistas enquanto vendedores
Uma clara diferença nos papéis de comprador e vendedor reside na esfera geográfica de actuação. Enquanto compradores, os distribuidores abastecem-se num mercado nacional ou mesmo mais vasto. No seu papel de vendedores, as empresas da distribuição actuam em localidades diferentes, possuindo uma rede de unidades com uma maior ou menor cobertura nacional. A Comissão Europeia considera que cada supermercado tem uma área de cobertura que correspondente a entre 10 e 30 minutos de distância, podendo esta ascender a 60 km no caso de hipermercados. É possível que os mercados locais contenham áreas de sobreposição que acabem por estender a concorrência a todo um país. Porém, em muitos casos a análise tem sido conduzida ao nível local. Por exemplo, nas decisões comunitárias n° IV/M.804 -Auchan / Pão de Açúcar ou n° IV/M.1684 - Carrefour / Promodés, relativas a operações de concentração, foram identificadas as regiões do território espanhol em que ambos os participantes possuíam estabelecimentos susceptíveis de deixar de concorrer entre si após aprovação da operação.
Neste tipo de análises é de grande importância saber se os preços fixados nas diferentes lojas são afectados por características locais, nomeadamente a proximidade de concorrentes. Com informação disponível publicamente, é possível estabelecer que existe, em Portugal, uma relação entre os preços praticados e algumas características próprias do supermercado ou hipermercado e da sua envolvente local. A DECO publica regularmente o preço de diversos cabazes de produtos em mais de meio milhar de estabelecimentos de diferentes tipos. Os cabazes em causa procuram representar o consumo de uma família típica e são mantidos fixos em todas as lojas, excepto no caso de uma cabaz definido de forma genérica, em que os produtos são comprados ao preço mais baixo disponível na loja. Tipicamente encontram-se dentro da mesma insígnia diferenças de preços na ordem dos 15% a 20%. Note-se que preços diferentes não resultam necessariamente de diferenças na concorrência enfrentada por cada unidade. De acordo com a teoria básica do oligopólio, uma empresa fixaria preços diferentes no caso de ter custos marginais diferentes ou de enfrentar procuras com diferentes características. É pois necessário ter em consideração estas diferenças. Controlando as diferenças nas características das próprias lojas (como a área, o número de empregados ou a insígnia a que pertencem) e na região em que estão inseridas (poder de compra local, densidade populacional, etc.) mostra-se que, de facto, a concentração local, medida através do índice de Herfindahl-Hirshman, tem uma relação positiva significativa sobre os preços.
Apesar de muitas decisões dos grupos serem tomadas a nível nacional, como campanhas publicitárias, sortido de produtos, layout e imagem das lojas, por exemplo, parece haver evidência de que a concorrência local afecta a política de preços seguida. A localização dos pontos de venda é pois um factor importante a ter em consideração ao analisar a concentração no sector.
Conclusão
O aumento continuado da concentração na distribuição tem implicações na sua relação com produtores e consumidores finais. Tudo o resto constante, o aumento da concentração parece reflectir-se no consumidor sob a forma de preços mais elevados para um cabaz homogéneo de produtos. Por outro lado, o aumento da dimensão relativa parece resultar num maior poder de negociação que traz consigo menores custos de aquisição do produto, o que pode conduzir a menores preços. Mesmo que este trade-off entre maior concentração e menores custos resulte favorável ao consumidor, os benefícios a curto prazo que lhe estão associados devem ser comparados com as possíveis perdas a longo prazo decorrentes de um menor incentivo por parte dos produtores em fazer investimentos na qualidade do produto, do processo e em inovação e de uma menor variedade existente, quer ao nível dos produtos, quer ao nível dos tipos de retalho.