Opinião
Revisão da matéria dada
Sem Aliança Atlântica e sem instituições europeias, o futuro não vai querer ouvir nada do que se sabe do passado. A matéria do próximo exame será a comparação dos autónomos competitivos com os dependentes assistidos.
A FRASE...
"Houve captura do Estado por outros interesses quando Sócrates foi primeiro-ministro."
Manuel Alegre, Diário de Notícias, 19 de Maio de 2018
A ANÁLISE...
Agora que estão a ser vividas as últimas ilusões que levam até ao fim das fantasias, as revelações sobre o que foi a construção dessas ilusões já não têm utilidade, só servem para confirmar o que não podia deixar de se saber. Mas ainda têm o efeito perverso de distrair do que é mais importante, o que está a ser a formação do processo de descontinuidade que vai separar o que foi passado do que irá ser o futuro.
Com o que foi a independência do Brasil, já se sabia o que ia ser a perda do império depois de 1974: sem escala que resolvesse a exiguidade do território continental, a escolha estava entre a integração europeia e a subordinação ibérica. Com o que foi a venda dos bens da Igreja durante o liberalismo do século XIX, já se sabia o que ia ser a venda do capital empresarial que o Estado nacionalizou em 1975 e depois dispersou em sucessivos leilões, assim convertendo o capital que nunca indemnizou pela dívida que tinha de ser contraída pelos que participaram nesses leilões. E também já se sabia que os intermediários leiloeiros, usando o seu estatuto de agentes do Estado, iriam aproveitar a oportunidade para organizarem os seus negócios particulares, com uma incompetência que só tem comparação com a ingenuidade de pensarem que nunca seriam denunciados, pelas polícias ou pela História. Esta revisão da matéria dada não tem honra nem glória, apenas confirma a mediocridade de quem ficou com o que merece - os eleitores e os eleitos, não há como distinguir uns dos outros.
Mas o mundo não fica parado na matéria dada e o mais importante, para o próximo exame, é a matéria nova. Já não se poderá contar com a solidariedade dos Estados Unidos, internamente divididos e sem liderança consistente, provando que a superioridade na tecnologia não é garantia de qualidade na política. Já não se poderá contar com a dinâmica orientadora e mobilizadora da União Europeia, dilacerada pelos populismos nacionalistas e refeudalizada por pequenos Estados sem escala económica e militar, provando que os desastres da guerra são sempre matéria nova para exame futuro. Sem Aliança Atlântica e sem instituições europeias, o futuro não vai querer ouvir nada do que se sabe do passado. A matéria do próximo exame será a comparação dos autónomos competitivos com os dependentes assistidos.
Este artigo de opinião integra A Mão Visível - Observações sobre as consequências directas e indirectas das políticas para todos os sectores da sociedade e dos efeitos a médio e longo prazo por oposição às realizadas sobre os efeitos imediatos e dirigidas apenas para certos grupos da sociedade.
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